sexta-feira, dezembro 26, 2008

Lina

Não gosto das amigas da minha avó, nem do natal, nem de ladrilhos de marmelada.
A Lina ligou, eu atendi e sabia muito bem quem era, mas tentei passar por desconhecida.
- Sim, eu vou chamá-la.
A Lina liga muito de vez em quando, no natal ou para anunciar a morte de alguém. Tem cara de gaivota velha, líder de um bando de pássaros que há muito a não segue.
À medida que a minha avó foi ficando cansada de viver, e deixou de a poder convidar para jogar canasta às quartas, ela nunca mais quis saber. Safada da Lina, queria era os pãezinhos de leite com fiambre e a tarte de maçã. Eu bem a vi outro dia no Pingo Doce a comprar pensos higiénicos.
- Menina estes são dos grandes?
- São, minha senhora.
Quando chegava a casa, percebia que era dia de canasta pelo cheiro das águas de colónia trazidas de Vigo. No bule, um resto de chá preto já demasiado amargo. Procurava então restos de bolos e pãezinhos, as senhoras deixam sempre um ou dois. Agora deixam o tempo cuidar delas e dos outros, à espera que o Fado lhes toque à porta, esse que lhes roubou os maridos.
(a não ser a Linda que compra pensos higiénicos para as netas e usa botas de tacão)
Caramba, o que teremos que fazer para que o presente não se divorcie de nós. Eu quero-lhe pedir em casamento, prometo-lhe ser fiel.
A velhice mais terrível é essa, aquela em que o que tempo não desfaz as marcas de baton nos guardanapos de linho, as migalhas dos pães de leite perpetuadas nas tardes de quarta feira sem lanche nem jogadas.

segunda-feira, dezembro 15, 2008

manhã

Preocupam-me ainda as coisas do passado. Escrevo como se o poema fosse uma realidade, ou dele nascessem as folhas da vida, com o verde esplêndido de uma súbita primavera. Sobreponho ao mundo a linguagem; tiro palavras de dentro do que penso e do que faço, como se elas pudessem viver aí, peixes verbais no aquário do ser. É verdade que as palavras não nascem da terra, nem trazem consigo o peso da matéria; quando muito, descem ao nível dos sentimentos, bebem o mesmo sangue com que se faz viver as emoções, e servem de alimento a outros que as lêem como se, nelas, estivesse toda a verdade do mundo. Vejo-as caírem-me das mãos como areia; tento apanhar esses restos de tempo, de vida que se perdeu numa esquina de quem fomos; e vou atrás deles, entrando nesse charco de fundos movediços a que se dá o nome de memória. Será isso a poesia? É então que surges: o teu corpo, que se confunde com o das palavras que te descrevem, hesita numa das entradas do verso. Puxo-te para o átrio da estrofe; digo o teu nome com a voz baixa do medo; e apenas ouço o vento que empurra portas e janelas, sílabas e frases, por entre as imagens inúteis que me separaram de ti.

Nuno Júdice

sábado, dezembro 13, 2008

pistolleto

driving with seixas

No fundo, tenho um fraco pela trivialidade. Atraem-me as mãos normais dele no volante. A conversa mediada pelo retrovisor, os taxistas vivem no mundo do reflexo e de algum silêncio.
Ele pergunta-me:
- Do you speak english?
Eu:
- Yes.
- So, listen this song.

E calámo-nos. Na rádio, a voz rouca e kitsch de Chris Rea:
I sing this song
To pass the time away
Driving in my car
Driving home for christmas


Rio-me. Rimo-nos.
Digo-lhe que é bom sabermos inglês porque assim percebemos as letras das canções.
Ele diz-me várias coisas em tempos diferentes da conversa mas que eu decidi juntar aqui:
- Tem razão menina, é que a música vem sempre acompanhada de poesia. Eu faço o turno da noite. Quando não há clientes, eu falo com os colegas ou leio um livro. Sou Seixas de nome, o meu avô também era Seixas e era conhecido lá na zona do Tua. Não há nada de anormal em trabalhar à noite, durmo sempre das 8 da manhã até às 4. Só não levo pessoas ao Marquês, é tudo para a prostituição, fecho as portas assim por dentro e abro o meu livro.

segunda-feira, dezembro 08, 2008

paterna

Não sei se é de termos medo das imagens, isto é, não sei se deveríamos controlar o tempo a que nos dedicamos a elas, ou seja, porque será que tapamos os olhos nos filmes de terror mas nunca deixamos de espreitar.
A minha avó estava bonita, assim, mesmo morta, mas já não sei se era ela ou não. Primeiro custa-me dizer que ela estava morta, como é que alguém morre, e que palavra mais arrojada - morte. Os homens inventam palavras sem saberem o que elas significam. Não há nada mais individualista que um caixão, se ao menos fossem mais largos e houvesse espaço para um compartimento cheio de bebidas, comidas e objectos. Chamem-me materialista, mas eu quero ir lá para baixo com meia dúzia de coisas que gosto, uns cadernos e algumas fotografias.
Voltando ao respeito pelas imagens
(ou simplesmente a ver vamos se eu reconheço qual é o meu estofo para ver um homem desdentado a pousar a minha avó lá debaixo dos nossos pés e depois pegar numa pá prefigurando uma cena de filme de terror série d)
Quanto tempo poderemos nós olhar para alguém que gostamos assim, inerte. As mãos tãos frias, ela nunca tinha as mãos frias, durante anos coçou-me as costas e o cabelo com as unhas sempre a respeitar um tamanho sensato, nunca demasiado arranjadas (detesto unhas perfeitas) e a pele bem tratada com cremes baratos.
Mas quais são as mãos que durante o inverno nos invadem o príncipio das costas,
ali naquele espaço de sedução entre a camisa e um par de calças,
(o idiota que inventou a palavra lombar não fazia a mínima do que falava)
e não nos fazem sentir o frio de fora que está a entrar para dentro,
entrar para dentro é um sublime pleonasmo a meu ver,
eu a pensar: espero que ela não se farte já
eu a pensar: espero que hoje se lembre de me coçar as costas antes de eu adormecer no sofá cama do hostel, cheia de medo que me peçam uma coca-cola a meio da noite, nesse espaço infinito entre a memória e um frigorífico.

quinta-feira, dezembro 04, 2008

merhaba

dentro

O homem entra na camioneta com um terço na mão, ostentanto a sua fé e poder.
É grande, sujo, usa gravata e tem barriga. A gravata repousa resignada na curva da pança e não consegue chegar até ao cinto. As gengivas são escuras, ainda que não as tenha visto.
O homem usa gargalhadas secas e altas para reagir à série cómica e estúpida que passa na televisão. Acho depravado tantos passageiros serem obrigados a ver o mesmo filme e a ouvir as gargalhadas de homens como este.
Gosto de ir ao cinema porque está escuro, podemos chorar à vontade sem que o vizinho da cadeira 26 nos desvende a cara molhada. Mais: no cinema não há a possibilidade de escolher a posição da cadeira. Na primeira meia hora de uma viagem entrego-me à angústia de não saber se devo ficar com as costas verticais ou então carregar naquele botãozinho e reprimir as pernas do senhor de trás.
O homem sujo repara nos nossos sapatos lamacentos e começa a apontar com os dedos inchados para o tapete de entrada feito de papel de jornal. Tínhamos que ter passado os pés nas notícias antes de entrar na camionete. Perdoou-nos de forma indecisa por sermos estrangeiros.
As mulheres à minha volta usam lenços na cabeça, normalmente às flores, que denunciam por vezes o comprimento do cabelo. Imagino-me a arrancar-lhes o tecido e a cultura - não sei se é lata ou não - mostra-me esse preto do teu cabelo, será um pouco ondulado, aposto que é brilhante, se te mexeres ele mexe contigo, e a cor das tuas pernas, terás varizes internas ou externas, não faz mal nem uma coisa nem outra.
Esqueço-me das cores delas, das gengivas do outro, da chuva lá fora.
Abro "Memórias de Adriano" e recomeço a viagem paralela.

sexta-feira, novembro 07, 2008

OgonçalO

O Gonçalo corre pelos corredores da Ordem da Trindade sozinho, como se quisesse provocar o silêncio e a doença. Ninguém o proíbe. Vestido de cores outonais, traz ao peito um papel com o seu nome que me faz lembrar o cheiro de um lápis aguçado. O Gonçalo tem um redemoinho na poupa do cabelo que lhe poupa algumas questões existenciais acerca do seu futuro físico - toda a gente sabe que este tipo de redemoinhos capilares são resistentes ao tempo, por isso, ele próprio se vai aperceber que afinal há sempre alguma coerência naquilo que o define.
Mas o miúdo não é assim tão heróico para estar sozinho, de uma das celas hospitalares sai a avó com o cabelo que lhe resta pintado de um vermelho quase eléctrico. A avó não traz nome ao peito nem tem cintura. É recta da cabeça vermelha aos sapatos ortopédicos, assim, meia enchouriçada.
A avó olha para nós e imagina um sorriso conveniente que nunca lhe chega a sair.
Chama:
- Gonçalo.
E o Gonçalo continua a fugir, desta vez vai pelas escadas, já está quase no 2º andar.
E eu, de cá de cima e através do vão, vejo a poupa a fugir também, movimentando-se quase livremente dentro daquilo que o próprio cabelo pensou ser o seu momento áureo de indepêndencia face aos genes. Pergunto:
- Gonçalo, tiveste um irmão foi?
- Não.
( ele já quase no primeiro andar)
- Então, é uma maninha?
- Não. Foi a minha mãe que veio aqui encolher as maminhas.

domingo, novembro 02, 2008

segunda-feira, outubro 27, 2008

insónia

Every word is like a knife
But the silence cuts you twice

quinta-feira, outubro 23, 2008

nada é meu senão uma ideia ou outra e mesmo assim

As coisas fogem-nos, assim, tão le n ta m e nte.
No sábado assaltaram o polo, tadinho dele com aqueles olhinhos expressivos que brilham de noite quando lhes carrego no botão. Talvez tenha deixado as portas abertas porque no dia seguinte não havia sinais de arrombo ou vidros partidos, o que torna o assalto de muito maior relevância porque passam a ser duas partes que têm culpa. Roubaram um maço de cigarros quase vazio e um soutien preto do continente (ainda com etiqueta) que a mãe me tinha oferecido no dia anterior.
Dois dias depois, o carro a ser rebocado. Vejo-o de pernas para o ar e vou a correr para a carrinha azul com 2 polícias lá dentro. Aqueles dois abutres fizeram-me lembrar aquelas estátuas de areia que participam em concursos veranis e aparentemente conseguem resgatar os turistas errantes do absoluto tédio do apartotel.
Peço-lhes para não levarem o carro. Não levam. Peço para não pagar os 70 €, mas isso já não podem, para além do mais já está tudo passado para o papel,
- Não vê? O papel.
Eis senão quando as lágrimas em cascata pela cara abaixo e continuo a chorar compulsivamente, não, compulsivamente não, foiapenascontinuamenteassimeaspalavrasmolhadasoxalá
molhassemtambémoshomenseasestátuassedesfizessem.
No dia seguinte a este desabafo universal com o mundo mediado por duas bestas, chove no Porto. Saio do carro, pego na pasta cheia de fotocópias/apontamentos/possibilidades e sem reparar como,

as folhas todas pelo ar a voar em fila indiana
como se obedecessem a uma ordem divina
depois a chuva a trazê-las à terra novamente
estão agora algumas coladas à estrada
outras continuam na fila para voar
não vou atrás delas
isto de as coisas nos fugirem
espero que os deuses entendam a minha letra

quinta-feira, outubro 16, 2008

in the mood

tripar

Nunca chegamos ao essencial. Diz-se:
O que interessa é o que está por dentro. Mas o dentro é mistério e escuridão.
O dentro é o que não conseguimos ver e por isso temos a lata de dizer que é bom ou mau porque ninguém pode provar o contrário.
O dentro são estas entranhas de que somos feitos, estes intestinos impertinentes, o fígado cansado, o coração em maratona. A minha outra avó está muito doente e eu não consigo ver nada. Tudo escuro, as doenças desenvolvem-se nesse sítio de dentro onde não se consegue ver. O que dirá o pâncreas do esófago? Nada. Convivem animadamente na escuridão absoluta, os cúmplices malditos.
O que importa é o que está por dentro. Não é nada.
Para além disto, a verdade é que temos nojo de tudo o que sai de nós, caca, sangue, catotas. Pois, porque já não nos serve. Não há injustiça senão em nós, que temos nojo das coisas.
O medo também não é flor que se cheire (sempre responsabilizei o medo por todos os males do mundo), mas pelo menos é mais animal. Agora o nojo, o nojo é uma construção humana complexa. Implica essa noção que somos uns seres assépticos que não somos, provoca-nos a mais diversas doenças, rouba-nos a imunidade mental e física.
Não sejamos enojados. Ontem, a Graça trouxe-me rojões e eu comi tripa enfarinhada pela primeira vez. Deixei um bocadinho no prato e fiquei desiludida comigo mesma.
(tripa não é nojo, é bom, mas é demasiado impositiva para um jantar tardio)

quinta-feira, outubro 09, 2008

macaco (2)

macaco

Como toda a gente, só disponho de três meios para avaliar a existência humana: o estudo de nós próprios, o mais difícil e o mais perigoso, mas também o mais fecundo dos métodos; a observação dos homens, que na maior parte dos casos fazem tudo para nos esconder os seus segredos ou para nos convencer de que os têm; os livros, com os erros particulares de perspectiva que nascem entre as suas linhas. Li quase tudo quanto os nossos historiadores, os nossos poetas e mesmo os nossos narradores escreveram, apesar de estes últimos serem considerados frívolos, e devo-lhes talvez mais informações do que as que recebi das situações bastante variadas da minha própria vida. A palavra escrita ensinou-me a escutar a voz humana, assim como as grandes atitudes imóveis das estátuas me ensinaram a apreciar os gestos. Em contrapartida, e posteriormente, a vida fez-me compreender os livros.

in "Memórias de Adriano", de Marguerite Yourcenar



(este livro é tão nobre de espírito, tomara toda a gente nascesse de palavras assim, fiquemo-nos pelas estátuas então)

quinta-feira, outubro 02, 2008

momentos descontínuos

A Júlia pediu-me que lhe pintasse dois quadros para a sua casa nova.
Pinta-me dois quadrinhos?
Pinto, mas não sei quando.
Está bem, vou então comprar as telas ao chineses e já volto. Tenho um sofá cor de chocolate.
Comoveu-me o recurso à metáfora, mas desde quando é que ela deixou de dizer castanho?
Talvez tenha sido nesse dia que o Patrick deixou a pasta de amendoim no hostel. É estranho lidar com sítios de passagem. Por fora escreveu o seu nome a verde, mesmo antes de me oferecer um agulha de tricot para eu conseguir ler melhor os ficheiros de computador.
Sempre que me sento naquele terraço.
Sempre que me sento naquele terraço a fumar um cigarro, contrariada por fumar um cigarro e contente por ceder à contradição, eu sou o Porto. Eu sou isto e eu amo esta cidade tal como ela me ama a mim. As gaivotas histéricas, constantes, os dias em que sinto irritantemente feminina. Aquele sino da Sé, um golo de cerveja para olear a estrutura enquanto defino o que ainda tenho para fazer no tempo que me resta para acabar o turno. Entende-me, eu estou aqui neste terraço. Ainda há um lampião do lado de baixo da travessa que acende e apaga. Acende e apaga, sempre foi assim, tenho medo que se apague de vez e acabe o jogo. O jogo consiste em arranjar uma justificação para tal desordem. Olha, vai por ali uma pessoa a passar, se calhar vai acender nesse momento, mas também depende do tipo de pessoa. Ideias carregadas de cepticismo, a luz que acende e apaga. Nunca acreditei em soluções brilhantes.
No terraço ouvem-se os diospiros do jardim abaixo a cairem. Imagino-os doces e rasgados na relva, à espera que algum de nós os apanhe, mas que forma mais altruísta de se matarem.

quarta-feira, outubro 01, 2008

tudo deve ser contado pelo menos uma vez

Tudo o que nos acontece, tudo o que falamos ou nos é narrado, tudo quanto vemos com os nossos próprios olhos ou sai da nossa língua ou entra pelos nossos ouvidos, tudo aquilo a que assistimos (e por que, portanto, somos de certo modo responsáveis), há-de ter um destinatário fora de nós, e esse destinatário vai sendo seleccionado por nós em função do que acontece ou nos dizem ou então dizemos nós. Cada coisa deverá ser contada a alguém - nem sempre a mesma pessoa, não necessariamente -, e cada coisa vai-se colocando de parte como quem folheia e aparta e vai destinando prendas futuras numa tarde de compras.

Tudo deve ser contado pelo menos uma vez, ainda que, como havia determinado Rylands com a sua autoridade literária, deva ser contado segundo os tempos. Ou, o que vem a dar no mesmo, no momento justo e às vezes nunca mais se não se soube reconhecer ou se deixou passar deliberadamente esse momento preciso. Esse momento apresenta-se às vezes (a maioria das vezes) de maneira imediata, inequívoca e compulsiva, mas muitas outras vezes apresenta-se apenas confusamente e ao fim de lustros ou décadas, como acontece com os grandes segredos. Mas nenhum segredo pode ou deve ser guardado para sempre do conhecimento de toda a gente, é forçoso que encontre pelo menos um destinatário uma vez na vida, uma vez na vida desse segredo.
É por isso que algumas pessoas reaparecem.
É por isso que nos condenamos sempre por aquilo que dizemos. Ou por aquilo que nos dizem.

Javier Marías, in "Todas as Almas"

quinta-feira, setembro 25, 2008

pensar ou não pensar

Entro no Sr. Júlio e não o vejo. Está o filho, que é parecido com ele, a servir vinhos e petiscos. Está ali ao fundo um cliente magrinho e fininho que por aqui passa muitas vezes. Costuma beber vinho verde de fato e gravata. O fato fica-lhe largo, como se celebrasse com o alcóol os tempos de jovem quando os tecidos ainda se colavam ao corpo musculado. O bigode é farfalhudo, quase de polícia, e também não lhe cabe. Uma cara triangular, todas as linhas a acabarem num queixo pontiagudo e decidido.
Peço uma cerveja.
Talvez me apeteça presunto mas não peço.
De repente aparece o Sr. Júlio à minha frente. Diz boa tarde menina, pega numa faca e começa a cortar o presunto.
- Mas eu não pedi presunto.
- Mas eu sei que a menina quer. Além do mais não me esqueço de retribuir favores.
- Dei-lhe as batatas sem esperar nada em troca.
- Há uma coisa que se chama consideração.

Calei-me, à espera de ouvir. E continuou a falar. Sobre os anos 50, sobre comunismo, sobre escrita.

- Menina, dê continuidade à sua carreira intelectual.

Sr. Júlio, creio que já o possa ter desiludido. Para além do mais, começou o Outono e passo os dias a sentir as palavras a secarem quando pego no computador. Vou para o atelier e só encontro o passado. Ontem lavei muito bem a casa de banho, desfiz-me da tinta seca que andava a entupir o lavatório. Inscrevi-me num mestrado para aprender uma teoria da qual eu não estou minimamente convicta. Percebo as teorias tão bem, mas não as consigo ver acontecer. Tudo o que estudo parece-me tão distante do presente.
Hoje estou de facto preocupada se a sopa de alface vai ficar cremosa e se a vitela não endurece. Estive a arrumar a cozinha e deitei uma data de legumes fúnebres que me fizeram sentir viva.

terça-feira, setembro 16, 2008

35

Sou o número 35. Há uma folha de rascunho à porta da secretaria onde se tem que escrever o nome e o número de chegada. Havia uma Vânia que era o número 34, como depois só havia branco escrevi 35 tracinho Maria. Depois é-se atendida sabe-se lá quando. Pelo menos na segurança social dizem-nos a hora prevista. Aqui temos uma cambada de gente com cara de impaciente ( se a palavra bicha aterroriza qualquer um, a própria coisa em si desmotiva o mais zen dos monges) e cabelos oleosos. Não sei se é de ser tão escuro neste corredor, mas algo se pasa com o cabelo deste pessoal. Parecem ter todos os pés secos como eu. A vida é mesmo um monólogo.
Bom, voltando à questão das filas. Hoje de manhã também fui ao banco. No banco tive que tirar um papelzinho que dizia "001" e por isso fiquei contente. Apesar do deserto da sala, o homem do banco carregou no botão que fez com que aparecesse o número 001 numa televisão. Dirigi-me ao balcão respectivo e eis senão quando começou mal o dia. Como já referi várias vezes neste blog, não consigo suportar gente que está ao balcão que nos trata como bebés insolentes. Não se lhe podia fazer uma pergunta que aquele ser de fato e gravata por fora porque por dentro era um trapo humano, ficava aborrecido chegando a explusar-me discretamente daquela agência.
- "Na outra de S.Lázaro é que se calhar resolve melhor isso".

Depois cheguei aqui e vejo este papel. Penso:
- Se hoje não fosse o último dia para fazer esta merda.

Vou ter que esperar, não é tão mau assim. Não sei porque nós, humanos, não conseguimos muito bem esperar. Até nem tenho nada de extrema importância para fazer esta manhã. Até pode ser adiado o que teria para fazer. Mas bom, não me apetece estar na bicha. Deixei lá o meu nome com um número na folha de rascunho (que pode ser aldrabada e modificada sem que ninguém dê por isso) e vim comigo para a sala dos computadores.
Não sei o que terei deixado lá.
Um possível lugar marcado.
Um número e uma assinatura.
Os pés secos reflectidos nos pés dos outros.
A vontade de receber um jacto de água que nos invada os corpos, se entranhe nos cabelos, o sebo bem lavadinho, os papéis das propinas desfeitos, a folha de rascunho sem números ou nomes - uma mancha de tinta uniforme, desejos borratados de sermos atendidos anotados por uma BIC.

quinta-feira, setembro 11, 2008

ei-los gios

Recebi um souvenir de Benidorm, enterneceu-me aquele golfinho de plástico. É um golfinho transparente e lá dentro cabem coisas como conchas, água, mini flores plastificadas. Agrada-me especialmente por ser multifuncional. A cauda do golfinho serve como abre cápsulas e o lombo tem um iman para se quisermos decorar o frigorífico. Algures no corpo transparente plastificado do bicho diz "BENIDORM".

- Toma Maria, trouxe isto para ti de Benidor.
(e enquanto admirava encantada a ausência do "m")
- Obrigado, estás maluca, escusavas de ter trazido, não queria que gastasses dinheiro comigo.

Logo a seguir pensei na frase estúpida que tinha dito.
Não percebo porque é que costumamos recusar prendas, não me parece uma atitude propriamente educada ou sensata. É como quando nos dão elogios, ficamos assim:

- Oh, obrigada, não sou nada, até que há gente muito melhor.

Se nos criticam:

- O quê? Olha mas é para ti.

Mas pior que tudo isto é não saber explicar como se gosta de uma prenda que nos deram. Eu sei que sou absurda porque sofro este dilema. A racionalidade é um leão domesticado. Se não fizer cara de espanto ela ainda vai pensar que vou deitar o golfinho fora, ai o que é que vou dizer para ela perceber que gostei, que valeu mesmo a pena ter gasto o que gastou, mas que porra de pensamento calculista este que eu tenho.
Talvez não suportemos a ideia de existência, não duvido que sejamos demasiado pequenos para isso.

(que seca, estou cada vez mais moralista embora não suporte moralistas - fico a tremer de um olho quando vejo aquela vice presidente do Mccain, orgulhosa mulher e mãe, não sei quê Pallin, caçadora de renas ao fim de semana, anti quase tudo que defendo e não defendo assim tanta coisa, pro tudo que considero desumano e insensato)

quarta-feira, setembro 03, 2008

romance suspenso

Passamos a vida à procura de coisas.
Não é uma grande conclusão, esta. Mas julgo ser verdade. A verdade nunca pode ser repetitiva porque é verdade e repete-se sempre de maneiras diferentes. A mentira é como os prédios, crescem onde quisermos, da forma que mais convenha ao senhorio e aos condóminos. E por ser de natureza calculista - a mentira sujeita-se a passar a ser uma coisa monótona com muito menos interesse. Afinal não sei, de repente parece que tudo o que disse até agora (pouco ou nada) deixou de fazer sentido.
Voltemos às pessoas que existem. Nunca poderia ser escritora.
Ela chegou aqui de calças brancas justas, isso, brancas e justas, e nem sequer se notavam as cuecas ou a mínima nódoa. Camisa preta acho eu que era preta, lembro-me apenas do decote e dos botões. Reparei também na traseira dos sapatos que me pareceram asas em vez de solas. Eram moles e silenciosos, não que as asas sejam assim.
- Venho ter com uns amigos.
E os amigos lá estavam, afinal era só um. Ela quis enganar-me com o plural, a marota. Não sei se queria mentir.
A parte mais picante fica para depois. Posso adiantar que não vi nada senão uma manta cor de laranja que tapava duas pessoas.
Por agora sinto-me apenas cansada de mapas, museus em ponto minúsculo, ruas que não estão lá, restaurantes que só sei onde estão se estiver a ir para lá com pés e não com as mãos. As bic nunca encaixaram bem no meu dedo, não sei porquê.
Passamos a vida à procura de sítios que não existem. Quando passam a ser verdade, há que nos entreter com a próxima mentira.
Isto não é um cliché, parece-me demasiado verdadeiro.

sexta-feira, agosto 29, 2008

a sudden gust of wind

água

Cheguei a casa. A minha mãe.
A minha mãe estava de branco e comia um pão de cereais com azeite.
No balcão da cozinha um chá de rosas. Eram botões de rosa cor de rosa botoezinhos assim pequeninos que depois ficam mais bonitos e abertos com a água a ferver. A casa estava a uma temperatura perfeita. A casa tinha sido pintada há dois dias e nem cheirava a tinta como eu gosto. Seco, branco e luz. Espaço e rosas pequeninas que bebemos as duas. Lembrei-me da palavra purgatório. A minha mãe usa camisas de noite brancas que parecem sempre passadas e cheiram ao chá. Depois a minha mãe perguntou-me se eu queria ir almoçar a um vegetariano chamado terra. No terra comemos tofu e arroz integral. Ela pediu um sumo de banana, iogurte e canela e disse várias vezes e todas as vezes como se fosse a primeira:
- Este sumo que está óptimo.
Acho que a sua intenção era que eu pedisse um sumo igualmente de banana, iogurte e canela, mas a mim não me apetecia e por isso não pedi. Pedi uma água das pedras que vinha fresca como eu gosto e não comi sobremesa porque não me apetecia. O telemóvel tocou uma vez e eu não atendi. Viemos as duas a pé pelo mar até a casa, onde eu adormeci por opção.
Escrevi este texto para quem não gostou do sangue do texto anterior. Há sempre alguém que não gosta.

segunda-feira, agosto 25, 2008

a massa

Ela disse:
- O quê, o meu bacalhau com natas não é bom? Tu nunca provaste o meu bacalhau com natas.
A irmã respondeu que já tinha provado e não tinha achado assim nada de especial, naquela quinta feira em que todos comemos juntos. Eu não estava nesse dia. Afinal o bacalhau tinha natas a mais, acabou por confessar a primeira, mas eu sei fazer esse prato que é uma maravilha.
Ela quase que podia ser alta e já foi loira um dia. Não sei desde quando é que quer continuar a ter uma cor na cabeça que já não tem. Não sei onde estava eu nessa quinta feira onde a cor do cabelo talvez se pudesse confundir com a cor do prato e está a apetecer-me vomitar lascas de pensamentos salgados sem qualquer grau de parentesco.
Talvez tenha sido no dia do bacalhau em que conheci a outra senhora de azul que gostava de falar de sangue. Um homem dali morreu e o sangue a sair-lhe pelas orelhas, pelo nariz e tudo. Falava em sangue e bebia leite. Ao lado, cassetes com cantores de penteados duvidosos e olhares penetrantes assistiam frios e impunes à conversa avinagrada. É a vida, olhe, tão novo. E o cantor em silêncio. Só ela falava, a senhora de azul. Eu, que estava com um vestido preto às flores brancas, senti-me possível toalha onde possivelmente se pudesse colocar um prato com peixinhos fritos do rio e recordar entre duas espinhas, possíveis feitos históricos do homem recentemente vivo.
Só não gostei quando vi o saquinho branco do sangue do frango no balcão da cozinha onde se fez o bacalhau com natas. Era arroz de cabidela para o almoço e sinto que este texto está mal cozido e ainda não se lhe tiraram as entranhas ao pito. Na mesma cozinha onde na quinta feira se fez o bacalhau com natas que eu não pude provar, estava um saquinho de sangue fresco para juntar ao arroz. O saquinho parecia daqueles antigos com leite do dia mas tinha sangue em vez de leite, ainda que ambos sejam símbolos de vida e fertilidade. Reparei que o sangue estava cheio de conservantes. Afinal não custa nada comer aquilo, não está tão vivo assim. Isto de matar o bicho e manter o sangue fresco com meia dúzia de números e E´s é de um cinismo atroz.
O que diria a senhora de azul quando visse isto, talvez:
- O meu arroz de cabidela é melhor que o teu, nunca provaste um assim.
Os cantores das cassetes fechados em armaduras de metal, mortos desde sempre naquele mostrador que roda e nós vamos vendo as caras deles ou eles as nossas.
Que fome, dizem, há tanto tempo que não via uma toalha tão bonita.

sexta-feira, agosto 01, 2008

pequenez

Como isto foi acontecer não sei bem. Não quero saber.
Entro no Sr. Júlio com um saco de batatas na mão para lhe oferecer. Vinha pesada, não sei se das coisas na mão ou na cabeça.
Passo o balcão e entro para a cozinha como se fosse minha, há espaços que se tornam nossos porque os já imaginámos antes. Deixo cair o saco e está lá ele, de avental branco e olhar satírico.

- Oh menina, então diga lá como é que se foi lembrar do Big Júlio.

Aquele "big" antes do nome soou-me estranho, mas ignorei-o. Aliás, pensei que se estava a referir às batatas, tipo - oh menina diga lá o que lhe deu para se lembrar de mim enquanto podia oferecer batatas mas é à sua família. Mas não. É então que tira um pedaço de papel que estava em cima do frigorífico. As mãos, que parecem de ferro, acentuam a leveza daquele pedacinho branco com letras impressas.
Leio, leio-me, e encontro-me na cozinha a ler o que escrevi sobre ele e tudo o que aquela tasca significa para mim. Já não sei o que é real - se o que escrevi, se o que estou a ver.
Fico envergonhada. Ele diz-me que aquilo foi lá parar através de outro cliente.
Peço uns petiscos em busca da verdade.
É então que diz:

- A menina não tema pelo seu futuro. A menina escreve muito bem e sabe articular a imaginação. Não tema, ouviu?

O Sr. Júlio leu o meu blog.
Em papel, claro.

domingo, julho 27, 2008

rotas

Adorava saber o que se passa cá dentro quando me sinto cansada.
E porquê, porque raio é que nos sentimos cansados. Quem é que me programou de forma a que se dormir 6 em vez de 8 horas eu vou ter que ficar assim, rota, toda rota como se costuma dizer. Rota quer dizer com buracos, e pelos buracos deixamos entrar (ou sair) coisas que não queremos (ou queremos). Estou toda rota, e mais uma vez é a escrita que me faz perceber as coisas, organiza-me o que sinto, é a mulher a dias do meu pensamento.
(lembrei-me agora que rota pode ser caminho e vou tentar aproveitar-me disso para me sentir melhor, mas só quando acabar este texto)
Entretenho-me a pensar na palavra em vez de sentir o cansaço. A minha avó não diz rota como eu digo, ela só a usa para quando há tecidos com buracos e pede à Lé para cosê-los.
- Celeste, esta camisa está rota.
A Lé é a costureira, cose coisas, mas eu não sei coser como ela, ao menos se conseguisse medir e cortar o que sinto. Estou cansada mais 10 cm do que o normal, peguemos na tesoura e deixemos cair na alcatifa fios, linhas e pedaços de coisas que não nos servem. Ela mexe com tecidos e eu olho para a minha pele, parece-me meia baça de não ter dormido, penso:
- Lé podias engomar-me a cara, passavas-me a boca e os olhos a ferro, o nariz não está tão mal assim. Passa a minha pele com esse ferro dos antigos que não é de plástico como os que se encontram na worten, uma modernice que não serve para nada dirias.
Já que és professional e tens uma singer, cose-me depois os buracos que me fazem sentir rota, que eu fico com a parte da limpeza. Deixa que eu pego na vassoura, junto as palavras todas num cantinho, empurro-as para o apanhador e deito-as aqui.
Obrigado.

quinta-feira, julho 17, 2008

restos

Quando fiz anos a minha irmã ofereceu-me um frasco de espargos verdes marca continente .
Adoro espargos verdes. Quando era nem criança nem adolescente ia com a minha avó ao carrefour e ficava a olhar para a prateleira das conservas para poder comparar os preços entre os espargos brancos e verdes, gordos ou magros, de lata ou vidro.

- Avó, hoje posso levar espargos?
- Não se pode vir com vocês às compras.

As idas ao carrefour tinham carro, cheiro e horas próprias. Íamos com uma amiga não muito velha da minha avó chamada Laidú. Sim, Lai Du. Uma mistura de chinês com crioulo. Ela própria tinha um cabelo bastante étnico, qualquer coisa entre um penteado afro e uma banalíssima "mise" ocidental. Poucas vezes lhe vi aquele cabelo - usava daqueles lenços plastificados para a cabeça como se estivesse sempre a chover. O carro era com estofos fofos, quentes, cinzentos, uma delícia para as viagens até Gaia que me pareciam longas.
Após uma hora e tal, a Laidú regressava sempre com dois ou três sacos meios frouxos, nunca percebi bem o que andava para ali a fazer durante tanto tempo.
Hoje abri o frasco dos anos no hostel, mesmo antes de almoçar.
Os aperitivos sempre me souberam melhor do que qualquer outra coisa.
Pensei que talvez houvesse uma maionese perdida de alguém que já foi embora.
Estavam lá várias, tipo hipermercado.
Escolhi a Calvé, a minha favorita, para misturar com os espargos.
Imaginei a Laidu à porta do Carrefour à minha espera, o canadiano que deixou aquilo ali, a minha irmã a tirar a prenda da carteira, a minha avó a dizer sim podes levar, e conclui mais uma vez que ver o todo em vez das partes é sempre muito mais interessante.
Esta coisa da vida é complexa e por isso difícil de se ver. Tal como uma uma teia de aranha. Convém sempre vasculhar o que resta nos cantos dos frigoríficos.

dedão

Como é que hei-de explicar, o dedo grande do pé dela, o dedo grande do pé dela não parecia dela. Sempre me surpreenderam os dedos grandes dos pés das pessoas, costumam ter personalidades fortes e têm ar de chefes. Bom, estávamos num casamento e as mulheres sempre tão sacrificadas para estarem bonitas, sempre tão bonitas, por vezes vezes enjoativas, mas vá lá, voltando ao dedo do pé da outra. Eu estava sentada numa poltrona de cor bordeaux à espera de fazer xixi, e olhava para o chão deliciada com os veios da madeira. Eis que se ouviu o som dos tacões de mulher no taco da madeira, tacões no taco, é assim mesmo e sem querer acabei de fazer uma espécie de música. Continuo a olhar para o chão e aparece um pé dentro de uma sandália de tacões fininhos, daqueles agulha. A sandália tinha duas tiras também elas fininhas e uma apertava o dedo grande do pé da senhora e este levanta-se ligeiramente da sola como se quisesse fazer uma pergunta. A tira apertava este dedo e este dedo não tem mais nada, começa a inchar e a falar comigo ou com a minha bexiga. Porque é que eu estou aqui, esta merda dói caralho e porque é que sou só eu que estou asfixiado, mais nenhum dedo deste pé nem do outro sofre como eu sofro. A certa altura aquele dedo ria-se de dor e gemia, tentando encontrar um espaço digno e livre. A certa altura pensei nas partes do meu corpo que não conheço muito bem, nuca, costas, rabo, o que dirão eles de mim. A certa altura, aquele dedo parecia não pertencer a corpo algum, e apesar de estar sob a ameaça da tira - vivia orgulhosamente o seu cargo de chefia e impunha-se aos seus quatro súbditos, quer dizer, ainda que haja uma porra de gente com o segundo dedo do pé mais comprido do que o primeiro, o primeiro é sempre o primeiro e concluo com isto que as mãos são mais democráticas que os pés.

terça-feira, julho 08, 2008

ou vir e sem tir

O carro estava em condições. Quando chegou a minha vez tive que sair de dentro da viatura enquanto um jovem se punha a acelarar a fundo no meu pedal. Aproximei-me de outro homem com ar de ter qualquer função e resolvi fazer conversa. Então diga lá o que é analisa nesse ecran, e que tal está o pólinho, e que números são esses senhor, que números são esses que eu não os conheço e me são tão indiferentes que acaba por se tornar absurdo este diálogo. Mas explique-me hoje aquilo tudo aquilo que eu não sei, ainda que amanhã já tudo possa ter esquecido, quem sabe fica qualquer coisinha.
Foi então que este homem falou-me com imenso orgulho e desmesurada paciência de azotos, carbos e óxidos. Tinha voz de professor e olhos de pai.
Depois perguntou-me se eu andava sempre na cidade, e eu disse que sim pensando em curvas/campos/vinhas, e ele disse que eu devia puxar mais pelo motor e eu respondi "está bem" enquanto sentia nas mãos e nos pés a explosão do dito cujo da última vez que resolvi puxar por ele.
Há sempre uma inevitável carga de mentira quando tentamos evitar discordar de um pai ou professor.
Não costumo mentir, acho.

sexta-feira, julho 04, 2008

inspecção

Sim, e agora a quem agradeço, sempre foi essa a minha dúvida, a quem é que devo agradecer por andar por aí sempre mais ou menos contente. Eu aqui na fila da inspecção do carro, e a saber que ontem à noite é que devia ter escrito este texto, era ontem sra.preguiça, afinal eu é que tinha razão. Ontem é que me sentia assim, tão divinamente grata a alguém (divinamente no sentido lato do termo que não sei se existe), tão pessoal e intransmissível. Sim, sempre gostei de ver estes termos nos cartões e afins, dá-lhes um carácter humano que estes não têm.
Hoje estou numa fila e muitos homens de fora dos carros a acenderem cigarros enquanto esperam pela sua vez, eu própria acendo um cigarro antes de abrir o computador para escrever isto onde me quero assumir humana, irrepetível e por sorte até feliz.
Pode ser que apanhe o senhor do ano passado, aquele que mora ao pé da minha casa e por isso resolveu falar sobre as palmeiras e o rio enquanto testavam os pneus ao polo. Talvez este ano o carro não esteja com os pneus em condições, e o senhor já nem trabalhe aqui ou então já não more na minha rua o que vai limitar definitivamente os possíveis temas da conversa.
Dizem que posso avançar, mais um bocadinho à frente menina, está bom aqui. Sinto-me a atingir uma meta. Se pensar um bocadinho mais sei que não atingi absolutamente nada. Tenho que fechar o computador.

terça-feira, julho 01, 2008

jeo

Tocaram dois seres à porta. Estava a trabalhar a tentar explicar o que era a torre dos clérigos a uma coreana que se ria com tudo o que eu dizia. Acho piada quando se riem assim, apetece-me rir por cima deles até ver quem é que se ri mais, até a palavra se desfazer em som e dialogarmos apenas através de gargalhadas mais ou menos explicativas. Ri-te Win Chu que eu rio-me contigo.
Entretanto pois, já tinham tocado. E estão lá fora dois homens que não podiam ser hóspedes. Têm óculos de sol escuros a fugir para o "moderno", camisas azuis e passadas de manhãzinha pelas mulheres. Desconfio que eram feios mas não lhes cheguei a ver os olhos, como é que se pode falar de Deus de olhos tapados.
- Você acha que há solução para a morte?
- Não sei o que você entende por solução, mas agora estou a trabalhar.
- Olhe, gostávamos que ficasse com isto.

Fechei a porta e olhei para o folheto enquanto esperava por mais uma risada, mas ela não estava lá. Abri aquilo por respeito às palavras e não a homens, li um bocadinho da teoria dos jeovás, demasiadas imagens pensei eu, acabei por ler a frase " cuide sempre da sua saúde espiritual enquanto aprende línguas estrangeiras" e fechei o livro orgulhosamente.

segunda-feira, junho 30, 2008

curas

A célebre forma de medicina moral (a de Aríston de Chios), «a virtude é a saúde da alma», deveria ser pelo menos assim transformada para se tornar utilizável: «A tua virtude é a saúde da tua alma». Porque em nós não existe qualquer saúde, e todas as experiências que se fizeram para dar este nome a qualquer coisa malograram-se miseravelmente. Importa que se conheça o seu objectivo, o seu horizonte, as suas forças, os seus impulsos, os seus erros e sobretudo o ideal e os fantasmas da sua alma para determinar o que significa a saúde, mesmo para o seu corpo. Existem, portanto, inúmeras saúdes do corpo; e quanto mais se permitir ao indivíduo, a quem não podemos comparar-nos, que levante a cabeça, mais se desaprenderá o dogma da «igualdade dos homens», mais necessário será que os nossos médicos percam a noção de uma saúde normal, de uma dieta normal, de um curso normal da doença. Será só então que se poderá talvez reflectir na saúde e na doença da alma e colocar a virtude particular de cada um nesta saúde, que corre muito o risco de ser num o contrário do que sucede com outro. Restará a grande questão de saber se podemos dispensar a doença, mesmo para desenvolver a nossa virtude, se, nomeadamente, a nossa sede de conhecer, e de nos conhecermos a nós próprios, não tem necessidade da nossa alma doente tanto como da nossa alma saudável, em resumo, se querer exclusivamente a nossa saúde não será um preconceito, uma cobardia e talvez um resto de barbárie mais subtil e do espírito mais retrógado.

Friedrich Nietzsche, in 'A Gaia Ciência'

sábado, junho 28, 2008

tel à vivo

Outro dia sonhei a noite toda com Israel. Senti-lhe os cheiros, procurei as ruas, subi a apartamentos de amigos, assaltei as cores e os tamanhos das janelas. Falei com gente que não conhecia e tive pensamentos sobre eles. Falaram-me de política, deram-me opiniões.
Nunca fui a Israel. Acordei a pensar o quão viajados não seremos, se ao menos nos lembrássemos de tudo que já sonhámos, que pessoas tão cultas e interessantes seríamos.

quinta-feira, junho 19, 2008

cheia de graça

Descobri o Sr. Júlio do universo feminino.
Tem olhos de sapo como ele que parecem duas ameixas saltitantes com vontade de fugir do resto da cara como se não lhe pertencessem.
Há dias que são só de dúvidas disse o Sr.Júlio no último Inverno. E ela agora entre pataniscas e lava loiça pergunta-me com a mesma leveza com que fritou o bacalhau: " E a morte como será?"
Sabes Maria, é que os momentos mais importantes da nossa vida que é quando nascemos e quando morremos, nós nunca havemos de nos lembrar deles, nunca - disse. Eu acredito tanto em Deus, continuou, já vi o filme de Jesus mas sei lá bem o que é verdade no meio de tudo aquilo.
Eu olho-a por uns segundos e digo que por acaso também acredito em Deus e ela pede-me que eu coma mais salada.

quarta-feira, junho 18, 2008

veículo movido a energia desconhecida

Pronto, fartei-me da selecção e do Cristiano Ronaldo, sim, já estava com medo de me fartar e agora fartei-me realmente, estou completamente farta - já não os posso comer mais.
Por exemplo, acho uma chatice ligar a televisão e ver um bando de lutadores a empurrar um autocarro com a equipe lá dentro. Não sei se já viram a versão original (http://www.youtube.com/watch?v=DTx_J9qDF5s), mas ele há gente a cair na neve e a levantar-se assim muito rapidamente com a força de um verdadeiro campeão. Há seres estranhos a empurrar o autocarro. Velhos, novos, giros, engraçados, indiferentes, mas nenhum com cara de português. E lá dentro os jogadores engravatados de semblantes muito sérios - verdadeiros responsáveis pelo estado do país. Mas que é isto? E que coisa é aquela do Simão estar a ouvir Ipod enquanto que alguns burros de carga berram lá fora? Sempre fui super adepta da selecção e até andava a usar um pin com o galo de barcelos que saiu à Júlia na tv mais.
Mas não consigo conceber a ideia de que uma equipe de futebol nos possa fazer amar e respeitar mais o país - porque não faz. Só se o amor e o respeito forem coisas que eu não sei muito bem como são, mas isso até já desconfiava.

(gostei de ouvir o daniel oliveira no prós e contras)

sábado, junho 14, 2008

120 anos

"Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra ,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra. "

Pelos vistos estão a tentar disponibilizar online mais de 1000 livros e cerca de 2300 papéis do espólio de Fernando Pessoa. Tudo o que ele escreveu será acessível para todo o mundo. Fiquei contente.
Intriga-me como este homem consegue ser tão intemporal e omnipotente. Nunca pensei grandes coisas para além do que ele já tivesse dito.

sexta-feira, junho 13, 2008

santos televisivos

Ontem, ao ver as marchas de S. António na televisão descobri que sou bairrista.
O São João é que é fixe.
Nunca tinha acompanhado em directo o tal festejo. Achei-o morno e decadente.
Primeiro apareceu-me uma jornalista inexperiente a entrevistar um homem muito suado que carregava uma espécie de altar.
- "Então, isso é muito pesado?" - pergunta ela.
- "É" - responde o homem com mais uma pinga de suor.
- "Quanto quilos, sabe?"
(isto é profundamente estúpido, por isso continuei a ver)
Pelos vistos, cada bairro tem uma madrinha e um padrinho para representar não sei bem o quê.
A Cinha Jardim está vestida de um azul inexistente e perdeu um brinco durante a marcha. É a madrinha do bairro de Alfama e diz: "Eu adoro isto!".
Tudo me pareceu chato, artificial e demasiado colorido. E depois todo aquele aparato televisivo, a bancada vip, o Rui Rio.
Não vemos quem está na rua, se o povo bebe cerveja ou vinho, as varizes das velhas, as camisas dos homens, as sardinhas da afurada, os martelos dos chineses, a gente, a gente, nós caralho.
Lisboa menina e moça, pois és.

(se calhar foi tudo culpa da televisão)

segunda-feira, junho 09, 2008

In US

Ela diz que quer guardar tudo no cacifo, que a vida é muito mais segura assim, dentro do cacifo e principalmente quando se é mulher e se viaja sozinha. Ela reafirma ter tudo controlado, gordinha, míope, tudo tão controlado. Viaja há já 7 meses e sempre com medo de ser roubada, violada, estropiada. Tem uma mala daquelas duras com código e carrega-a orgulhosamente pelas escadas acima. Está a ficar vermelha, não, desculpem, afinal já vinha vermelha da porta, e eu ofereço-me para ajudá-la a carregar a sacaria. Não, não, obrigada, eu tenho que carregar tudo sozinha, estou a viajar sozinha, disse para mim mesmo que não devia aceitar ajudas para carregar malas, tenho que as aguentar.
Depois apareceu o americano peregrino que dizia "cafe con leche" e "buenos dias" quase compulsivamente. Pé ligado e a roupa a precisar de ser lavada. Perguntou à da mala dura se queria dividir o custo da máquina de lavar.
- Desculpa mas não vai dar, afinal já tenho tudo controlado, a roupa lavada dentro da samsonite e como é que podia misturar as tuas meias suadas, defuntas, talvez restos mortais de bolhas, com as minhas cuecas imaculadas. Tomo no mínimo 3 banhos por dia e a primeira vez que bebi alcóol foi na Irlanda. Uma guiness e claro, só depois de ter feito 21.

sexta-feira, junho 06, 2008

divórcio

Não, não era verdade o que eu escrevi acerca das baratas. Afinal detesto-as Sara, odeio-as, não as percebo nem as aceito.
Hoje, logo hoje e eu exageradamente sensível às 3 da manhã com vontade uma tosta mista. E as baratas a devorarem-me o desejo do queijo antes que eu pudesse satisfazê-lo, sim, as baratas, foram comer a minha vontade antes que eu comesse fosse o que fosse. Pequenas, grandes, médias, terríveis, e eu a pensar se eram elas que me estavam a invadir a cozinha ou se era eu, nós, que invadíamos o mundo com prédios, fornos, máquinas, medos. Deixei a luz da cozinha acesa e vim para a cama escrever este texto preto, barato, repelente, mas que pelo menos sei que acaba aqui, que acaba quando quero e a colónia de insectos para quando será.


(abro a janela, acendo um cigarro e pergunto-me se as baratas terão medo da luz como algumas pessoas têm do escuro)

segunda-feira, junho 02, 2008

passa e amassa

Voltar a certos sítios onde passamos muito tempo da nossa vida é quase sempre complexo. Pode ser agradável ou doloroso, mas é complicado das duas maneiras. Por exemplo, hoje quando regressei ao trabalho de atelier depois de uma curta temporada sem por as mãos nas canetas e nos pincéis, senti no dedo mindinho do pé o peso da ausência. Fez-me impressão a naturalidade com que as coisas se detrioram quando alguém não está por perto. Ou seja, o normal é tudo se estragar com o tempo e nunca o contrário. E andamos aqui a lutar contra não sei bem o quê. Não quero falar de invenções estranhas como a a tristeza que todos sentimos a obrigação de acreditar que com o tempo ela tende a passar e não a aumentar (o que também pode acontecer). Não, falo das coisas que vemos e que existem, daquelas que tocamos com as mãos todos os dias, da matéria apalpável, amorosa e desejável.
Hoje, ao ver metade dos pincéis duros e presos a tinta seca, papéis invadidos de pó, a lâmpada fundida da casa de banho - senti-me pouco dona de qualquer coisa, não sei muito bem o quê.

quinta-feira, maio 29, 2008

a palavra e a verdade


A incredulidade de são tomé, Caravaggio

(Hoje um taxista de gaia revelou-me que era mais perigoso trabalhar de dia do que de noite. Numa certa tarde, "aqui há atrasado", a senhora que levava até são joão da madeira fez-lhe um corte no pescoço. Conseguiu-se defender-se e "deu-lhe porrada dentro da viatura" - contou-me exaltado. Levou 24 pontos depois do despropositado ataque feito a x-acto. No tribunal não conseguiu defender-se porque "era a palavra dela contra a minha" e não havia qualquer testemunha. A senhora alegou que teve que reagir assim devido a um prévio assédio sexual do motorista, e ele apanhou uma pena de 9 meses de prisão de que se conseguiu livrar mediante o pagamento de uma caução. Trezentos e cinquenta escudos por dia, disse, era a minha palavra contra a dela.)

terça-feira, maio 27, 2008

contacto

Tenho medo da Ana Malhoa.

domingo, maio 25, 2008

ser

A nossa vida pode mudar de um dia para o outro.
Ando quase segura que nos podemos habituar a tudo. Que conseguimos viver das formas mais inimagináveis ou insuportáveis. E que o sofrimento é como qualquer matéria orgânica que com o tempo tende a decompor-se. Não sei se penso isto ou se quero pensar assim. Mas eu bem vejo os velhos, como reagem às desgraças. Não sei se aquilo é sabedoria, insensibilidade ou puro comodismo. Suponho que um pouco de tudo.

(a minha avó reage tão naturalmente à morte das amigas e dos cunhados)

deep loma

Recebi o diploma pelo correio. Acabei o curso em 2005. Há um ano e tal fui obrigada a pagar cento e tal euros por aquela coisa já não sei porquê. Suponho que para provar a algum departamento de uma escolinha qualquer que andei a estudar 5 anos.
É um objecto repelente. O papel é feio (não encontro outro adjectivo mais rico que este) tentando imitar mármore, a letra gótica ligeiramente pixelizada. Depois há qualquer coisa como uma fita onde está pendurada qualquer coisa como uma medalha. Força, conseguiste acabar a maratona. Pelos vistos a medalha deve ser feita de um material mais ou menos bom já que tem um invólucro de plástico a protegê-la. É uma coisa pesada - fisica e esteticamente. Não sei que lhe faça. Se ofereça ao meu pai que generosamente me andou a pagar as propinas. Se limpe o rabo com o papel mármore de modo a que o estampado me pareça mais natural. Se compre uma moldura no ikea e o pendure aqui no hostel, muito orgulhosamente, ao lado desta secretária onde me encontro agora sentada.

terça-feira, maio 13, 2008

profundezas


Às vezes, ao ler o que escrevo, fico pasmada com a quantidade de energia que dispendo ao descrever pessoas que me são desconhecidas.
Concluo que este blog é uma espécie de revista cor de rosa com pretensões formais despropositadas. Baseado - tal qual como a lux ou a nova gente - em suposições, injustiça e mentira. Eu sei lá bem os tesouros escondidos do bigode da gulbenkian. Se calhar, ele até sabe onde fica a reserva natural portuguesa Paul de Boquilobo e eu aqui tão triste por me aperceber no Quem quer ser Milionário que continuo uma ignorante com vontade de não o ser. Pior ainda.

segunda-feira, maio 12, 2008

securitas

De repente fico preocupada com as profissões dos outros. Olho para o segurança das catacumbas da gulbenkian e penso o que fará sozinho todo o dia sem luz. Entro, dá-me um cartão a dizer visitante, pergunta-me o nome, não sorri. Usa farda, sempre a mesma e todos os dias naquela secretária a controlar as entradas. Sempre me assustaram as fardas. O bigode é preto, denso, imóvel, parece um tronco chamuscado. O nome por favor. Quê, Maria quê?
Penso, o que é que você guarda para além do meu nome mal escrito? Uma série de cartões de molas estragadas que não se agarram aos casacos, todo o silêncio inscrito nessa farda passadinha e no bigode bem comportado, um sorriso que lhe ficou no esófago e talvez fosse a escuridão que não o deixasse sair.

sexta-feira, maio 09, 2008

quarta-feira, maio 07, 2008

hostel 2

Dão-nos 24 horas por nossa conta. Temos que trabalhar, abrir a porta, fazer check-in, hello I´m Maria, the bus stop is there, porto wine is great, maybe you can try piolho for a beer.
Mas nos entretantos fico sozinha e penso quem é este aqui a quem trato pelo nome, para quem sorri sem saber porquê, com quem vou beber a garrafa de vinho mais barata do mini preço com medo que me faça mal.
Os maiores ataques de solidão são sempre com gente ao lado.

domingo, maio 04, 2008

olhos tão rápidos mesmo de vidro

Viagem do Algarve para o Porto. Nutro desprezo por qualquer companhia de camionagem desde que um condutor da Renex ofereceu deliberadamente a minha mala a um arrumador que por ali passava na hora do embarque.
- "Sr.Motorista, aquela mala verde é minha.
- Então tome lá." Foi assim. Desde então não confio em nada nem ninguém que tenha a ver com a palavra camionagem.

Esta não era da Renex, Eva de seu nome. Nome bastante mais sugestivo, no mínimo.
O meu companheiro de cela é um senhor de 70 anos, preto, bengala, óculos de massa anos 70, sacos plástico, olho de vidro, fecho das calças aberto. Encontro no banco uma revista chamada Happy Woman. Na primeira página uma crónica da directora onde revela aos leitores que gosta do cheiro da terra molhada e das festinhas do marido. Folheio rapidamente todos os sapatos e cremes até chegar à secção onde se fala de sexo que é sem dúvida a mais divertida. Interessante como estas editoras e jornalistas analisam as relações. Como se bastasse ser atrevida e usar meias de liga para mantermos o nosso cônjuge de posto olho em nós. Enquanto admirava mulheres de lingerie em poses ridiculas, o olho de vidro começou a ganhar vida.

segunda-feira, abril 28, 2008

hoje não tenho idade

A minha avó faz hoje 87 anos. Quando cheguei a casa para almoçar estava sentada no sofá, no lugar que é só dela. Agarrei-a, disse "parabéns avó", e quis que aquele abraço durasse para sempre, que eu me tornasse rugas e ela cabelos castanhos, quis perceber porque é que todo o seu corpo está mais próximo da terra que o meu, as costas a fazerem um ângulo recto com as pernas, os olhos na alcatifa rasgada.
Costuma dizer com um ar cómico que é velha e que "quem de novo não vai, de velho não escapa". Mas hoje, olhar para ela no sítio de sempre e de camisola arranjada por causa das visitas, fez-me perceber algo muito parecido com a eternidade.
E que isto de morrer pode ser para todos, mas gostar de alguém desta maneira é muito mais complexo e se um dia eu for avó vai ser ela a amar os meus netos.

quinta-feira, abril 24, 2008

a gaja que estava ao balcão

Uma repartição de finanças improvisada no primeiro andar de um prédio escuro. Três mulheres atrás de secretárias beges anos 80. De repente começo a imaginar a Roménia, país onde nunca estive. Três mulheres atrás de secretárias beges. Não, afinal não são mulheres, são seres assexuados. Pela posição, fazem lembrar três cactos dispostos em linha recta.
À primeira, dou-lhe a alcunha de castelo de areia. Parece compacta na forma mas frágil no conteúdo. Assim, de camisola bege, cara bege, sentada atrás da secretária bege. Areia, muita areia, e de tanta areia e tão seca - o castelo acaba por se desfazer e eu não consigo pensar mais sobre ela.
A segunda tem cabelos muito encaracolados e exibe orgulhosamente anéis grandes de plástico. É a menos monocromática. Olho para o meu ticket e desejo que o número 93 me leve até aquele monte de esperança.
A terceira é a pior de todas. Não é velha nem poética como a primeira, e a léguas de ser tão afirmativa como a segunda. É um pedaço de ranheta de anteontem. Usa base densa e foleira que lhe tinge os pelos do buço da cor do produto. Parecem maiores assim pintados.
É a que me calha na rifa.
Não me adiantou grande coisa, o cacto ranhento que deve comer chocolates antes de ir para a cama, não se lhe podia fazer perguntas que ficava logo afectada por atender alguém contabilisticamente inculto e desinteressante. Informou-me com um ar muito sério que pertenço à categoria B e que por isso devo pedir o impresso B na altura de declarar o IRS.
Cala-te, e faz-me mas é uma canja com letrinhas cozidas que eu ponho-te a contar os B´s que há no meu prato.

quarta-feira, abril 23, 2008

a seguir por favor

Hoje vou às finanças tornar-me legal. Dizer-lhes que existo e que ganho de vez em quando. Comprar aquela coisa dos recibos verdes que toda a gente detesta.
Incomoda-me saber que vou passar a fazer parte deste jogo do gato e rato. Assusta-me a ideia de começar a debitar discursos amargos sobre os impostos, anda a gente a trabalhar toda a vida e os políticos com ordenados vitalícios, o estado é ladrão, leva metade do meu ordenado e se ao menos atendessem a minha avó no pedro hispano.
Esta situação de quem está a verdes parece-me desprezível. Não nos consideram reais trabalhadores. O nome prestação de serviços faz-me lembrar assim ao de leve a palavra prostitução.
Mas hoje, apesar de toda a revolta que vislumbro no futuro, de quem eu tenho mais medo hoje, sim - é da gaja que vai estar ao balcão.

mini

Deus dá lentes a quem não tem olhos.

segunda-feira, abril 21, 2008

milhões de tão pouco

Se ganhasse várias vezes o euro milhões, daria toda a minha massa a ladrões, corruptos e novos ricos para que não tivessem que pensar mais em dinheiro.

Depois, o que sobrasse, distribuiria por gente honesta e amiga para que pudessem ter o bobi num jardim cuidado e observar a evolução dos grelos apenas na época certa.

quarta-feira, abril 16, 2008

bife ana

7 da tarde, hora da bifana.
Gosto de jantar ao fim da tarde.

- Sr. Júlio, qual é a sua palavra favorita?
- Olhe que nunca tinha pensado nisso menina. Deixe-me cá pensar. Acho que deve ser mais que uma. Já sei.
Acção. Apto. Preguiça. Seguir.

Dito isto houve uma conversa tão intensa que temo não a conseguir reproduzir. Das palavras fomos parar à guerra dos sexos e descobri que o sr.Júlio é um machista feroz. Não me incomodou nem um bocadinho. Ainda assim, apliquei-me afincadamente na discussão sabendo à partida que o homem não iria mudar de ideias. Defendia a primazia masculina com extrema convicção e via-se que já tinha pensado em todos os argumentos. Gerações e gerações de mulheres na cozinha e hoje em dia os grandes chefs são homens. Distraem-se muito facilmente, vão abaixo com qualquer coisa. Andam nisto o tempo inteiro, em baixo e em cima, mal dispostas, bem dispostas. Pior é quando querem ser as maiores do mundo, e se põe acima de tudo e todos com os seus delírios femininos. Menina, as mulheres nunca foram inteligentes, são seres burocráticos - disse.

hostel em volume

A australiana estava mortinha por falar com alguém. Viaja sozinha há meses. Fala alto, peço-lhe para falar mais baixo, ela fala mais baixo e desculpa-se dizendo que é australiana. Fala com dois mexicanos daqueles que olham para as mulheres assim muito de força e parece-me que Rachel gosta disso. Rachel tem um piercing nos lábios que não lhe permite fechar completamente a boca. Um dos mexicanos usa carapuço dentro de casa, o outro não tira o lenço do pescoço. Não parecem deslumbrados com nada. Rachel quer comprar vinho e eu tento vender-lhe porta da ravessa que é o único que ali tenho. Diz que quer mais barato e volta com um regional das terras do sado produto mini preço. One euro and forty five, ooohh that´s amazing, it´s so cheap Maria. Bebem a garrafa até ao fim, sem opinião. Rachel tem agora, à volta do piercing, os lábios quase castanhos, tingidos pelo sado.


Aparece uma americana a pedir uma pizza. São onze da noite. Fica deslumbrada com o facto de no Porto também haver home delivery. Essa não fala tão alto como Rachel, mas tem uma voz muito pior porque mais esganiçada. Tipo cadela que queria crescer e não conseguiu. Fala fala fala. Não sei para quem fala. Não me parece que queira ser ouvida sequer. Apenas ladrar.


As cinco italianas são tão mulheres e tão latinas que me chegam a incomodar. É a segunda vez que me vem pedir um secador de cabelo, não percebem como é que o hostel não providencia um secador de cabelo. Sentam-se nos puffs, sacam das suas mantas e escolhem um filme daqueles em que há um mau que ataca toda a gente. Bebem água e coca colas que não pagam na hora, é a filosofia do deixa ficar na conta. Tipo mercearia. Monopolizam a sala. O som está tão alto, ouço sirenes na recepção. Não lhes interessa falar com mais ninguém, têm-se umas às outras.

segunda-feira, abril 14, 2008

corações 2

A Alberta enviou uma mensagem à minha mãe:
"Bem haja pela companhia/cineminha/jantarinho. Gostei imenso da sua filhota. Um abraço muito grande."

Gosto deste affair entre a língua portuguesa e os inhos.Só ainda não percebi se revela um enorme carinho pelas coisas ou medo em assumi-las.
Sim, porque é só uma cervejinha de vez em quando. Depois um cigarrinho, quem sabe, já que não faz mal a ninguém. Amanhã se estiver calor vou usar aquele topzinho muito decotado. Depois talvez vá dar um beijinho à Alberta, seguido de um abracinho bem sincero e dizer-lhe de mansinho que esta vidinha é tão misteriosa que a devemos amar e respeitar, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza para que não nos passe assim muito ao lado.

(sábado fui a um casamento)

quinta-feira, abril 10, 2008

do tipo camarinha

Gostava de saber porque é que aparecem olheiras quando não dormimos.
"Ihhh, estás cá com umas olheiras. Estás de directa ou quê?"
As olheiras denunciam as nossas horas de sono o que pode ser chato se o colega de trabalho entender que hoje não vamos render tanto. Dormir é pessoal.
Duas covas cinzentas logo num sítio tão central e por uma questão de tempo, já vi coisas mais razoáveis.
E se agora ficássemos com uma mancha vermelha na ponta do nariz de cada vez que fizéssemos muito pouco cocó.
"Ih, estás cá com um vermelhão, vê-se mesmo que não cagaste".

quarta-feira, abril 09, 2008

de caras

" Os problemas são nossos, a cara é dos outros"

(dizia a minha avó paterna invadindo de pincel a cara da minha tia com pó de arroz; a minha tia tem trinta e tal anos, 4 filhos, estava cansada nesse dia e ia a casa da milucha jantar)

terça-feira, abril 08, 2008

corações, de alain resnais

A Alberta é triste, loira, olhos longes e azuis. É alta, quase gorda. Mãos bonitas. Já foi hospedeira de bordo e nessa altura roubava talheres e toalhas dos hotéis. Diz que que era muito bem disposta, cheia de namorados. Está desempregada. Vivia com uma cadela chamada "Ararat" que morreu há umas semanas. Desde então, a Alberta não consegue entrar em casa. Pediu a amigas e paróquias que a albergassem durante o luto. Ontem fui com ela e com a minha mãe ao cinema ver "Coeurs". À saída disse que o filme lhe veio mostrar que afinal não está sozinha no mundo. Fomos a uma pizzaria e ela quis saber se a sopa era caseirinha. Perguntou à minha mãe (comigo à frente) se eu era uma pessoa que olhava para dentro. Antes que a minha mãe respondesse, perguntei-lhe o que era olhar para dentro e ela continuou mais ou menos a ignorar-me.
Deixamo-la em casa, a primeira noite sem Ararat. Agradeceu o serão, pediu que rezássemos por ela. Dei-lhe um beijo e disse "beijos alberta" enquanto a beijava. Sei que não sei rezar. Fiz o caminho todo de regresso até casa com medo da solidão.

segunda-feira, abril 07, 2008

raffaello - as 3 graças

roma

O título chamar as coisas pelos nomes foi rejeitado. A galerista disse que não lhe soava bem a frase e perguntou-me "e que tal em inglês"? Eu estava precisamente a falar inglês na altura em que me ligou, primeiro dia como recepcionista num hostel, uma confusão de línguas, nomes, imagens, papéis - e respondi a tudo que sim. Sou poupada nos nãos que uso e tenho pena disso. Por momentos achei provinciano esse recurso à lingua inglesa. Como se a verdade não soasse bem só por ser dita na nossa língua. Então vá, bota-se a coisa noutro idioma que já não fica tão mal porque pouco passamos a sentir e tudo se torna mais fácil.
Deram-me português e é com ele que quero ser, embora possa estar com outras línguas. Em inglês nem sequer sabia como fazer esta distinção entre ser e estar, como se o " to be" me fosse servir para os dois.
Português não é piroso. Quero dizer "amo-te" em vez de "I love you", porque dentro de mim sinto amor, sim, amor, só amor, um amor imenso e love muito pouco.

quinta-feira, abril 03, 2008

woolf



O título da próxima exposição será "Chamar as coisas pelos nomes".

depurar

Já gostei de dar títulos aos quadros ou a uma exposição. Hoje em dia é um tormento. Como se reduzem todas as angústias, vontades, erros, dias, horas, minutos, segundos numa palavra? Não há palavra que mereça tanta coisa. Maior parte delas são ingratas e redutoras. Às vezes acho que devia haver um nome diferente para cada pessoa no mundo. Não seria assim tão complicado e acabavam-se os rótulos que cada família acarreta. Isto de dar nomes às coisas. Mas confesso que por vezes também não me custa assim tanto, especialmente quando se trata de adjectivar pessoas que não conheço. Por exemplo, a gaja da ervanária é feia e tem cara de enjoada. É também enjoativa, porque me enjoo só de olhar para ela. Tem cara de peixe estragado, os olhos demasiado cá fora e a boca a querer chegar aos pés. Pinta-se imenso e sempre da mesma maneira. Não gosto de mulheres excessivamente maquilhadas ao balcão de ervanárias, retira-lhes a credibilidade. Não consigo confiar nela nem pedir-he ajuda. É daquelas que diz "prontos" uns a seguir aos outros. Era gorda mas já não é. Espero que não tenha feito a dieta à base da depuralina, não vá ela amanhã apresentar-se ao trabalho para além de feia, doente do fígado.

terça-feira, abril 01, 2008

i don´t lamb messenger

A minha irmã de 14 anos é viciada no messenger. Passo o jantar a ouvir o tlim das janelas virtuais. A carne assada hoje soube-me a pixel. Raul acabou de entrar. Xalu acabou de entrar. Ana acabou de entrar. Agora é a vez do Toni e do Johnnie Johnnie. "I lamb iu" diz um deles. Isso vem de lamber ou de amor? Venho ao computador e a festarola ainda a processar. Toda esta tertúlia fragmentada a entrar nos meus ouvidos, olhos, pensamento. Continuam a "mensajar" que me adoram, que estão à espera que eu responda, que têm saudades minhas. O nick de um é : "sobervivi ao encino portugez", um gajo com piada esse. Invadem-me com fotografias da escola primária como se fosse há muito que por lá passaram. Sempre estranhei este interesse massivo da adolescência por fotografias quando todos éramos bébés cagões. Olha que querida que eu era. Agora dou beijos com cuspe e tenho pêlos púbicos mas já me habituei a eles. Os das axilas é que são uma chatice.

sms

Hoje, enquanto pintava um pássaro que queria que se assemelhasse a um cão, entra-me pelo atelier adentro (gosto de palavreado oral) uma gaivota. Bate as asas freneticamente, dá duas voltas e sai. Estava furiosa, nem tive tempo de lhe sacar o tamanho ou o olhar.
Há quem deteste gaivotas, eu não. Já ouvi relatos assustadores de pessoas que estão de relações cortadas com a espécie. Por exemplo, a Catarina deixou de gostar de gaivotas quando uma lhe bateu à janela do quarto de hóspedes a meio da noite. O vidro, o bico, o tic tic no vidro, deixem-me entrar, mas o que é isto, será um ladrão, tic tic e um medo do diabos. A Catarina vive sozinha e por isso não gosta de acordar à noite com sons que não conhece. Naquela noite teve imensa coragem, levantou-se, foi até à próxima divisão e assim percebeu que tipo de assaltante se tratava.
A minha não teve que fazer barulho. A janela estava aberta. Acreditei por momentos que sabia que eu estava prá'li a brincar às metamorfoses, que aquilo no papel já tinha deixado de ser um pelicano para se transformar num cocker domesticável. Pare lá de ser subversiva e tenha respeito por nós que a gente ainda tem muito orgulho de sermos os únicos a conseguir voar.

segunda-feira, março 31, 2008

lembro-te muito seriamente e ainda cheiras a naftalina

Ela recebia-nos todos os verões na sua casa com cheiro a naftalina. No primeiro de Agosto, depois de pousarmos as malas, entregava-nos as chaves de um velho armário com boiões de vidro que nos permitia o assalto massivo a diversos tipos de biscoitos. As mãos tão cheias de vontade, tão desprendidas de prazos,
calorias,
tretas da meia idade
(as crianças e os velhos não têm medo de salmonelas nem iogurtes fora do prazo).
Ao almoço bebia dignamente um - nunca mais que um - copo de vinho tinto que misturava com açucar. Trazia ao pescoço sempre o mesmo fio que carregava um segredo e por isso não o posso contar. O marido vivia só em fotografias e nunca tiveram filhos. Jurava a pés juntos que tinha um vizinho da frente chamado Pássaro Amarelo que limpava as escadas ao sábado e tinha mau feitio. Obrigava-nos a dar beijos num urso bem vestido com olhos feitos de botões verdes. Depois dos beijos, pousava o urso no parapeito da janela e eu acreditava que este, depois de beijado e arejado, nos reivindicasse uma espécie de protecção divina. Ainda acredito. Quando ela morreu deixou-me (para além das bolachas sem prazo de validade e da atracção pelo vinho) o mamífero, o fio de segredo pendurado e outras jóias que usava mas que eu não consigo tirar da caixa. Sinto-me tão feia com coisas valiosas no pescoço e nos braços.

sexta-feira, março 28, 2008

assunto sério

Incomoda-me gente demasiado séria. Não entendo porque é que se tem que ser sério. Parece-me uma atitude ingrata. Se me disserem que o homem da tabacaria é um homem sério eu até percebo, quer dizer que não rouba os clientes nem olha para as maminhas das garotas. Mas não é destes sérios que eu estou a falar, que afinal de contas não passam de pessoas honestas e muito bem. Falo daqueles que vêem todo e qualquer assunto como uma coisa que tem que ser levada a sério. Não te rias que isto é mesmo a sério, isto a vida não está para brincadeiras, anda mas é meio mundo a enganar outro meio. Gente chata portanto. Fala-se do joanete da vizinha e imediatamente apresentam a cara número 3 que é a expressão tensa que costumam usar quando se trata de problemas de saúde. Depois, quando os músculos da cara começam a cansar fazem aquela coisa com a língua, sim, aquele exercício português de levar a ponta da língua ao céu da boca e largá-la violentamente até se ouvir um T agudo que quase sempre é seguido pela frase "é a vida", que é como quem diz não te tenho mais nada para dizer para além de já estar cansada da cara. Há ainda os insuportavelmente sérios a trabalhar, como os assistentes das operadoras telefónicas que têm sempre o prazer de estar a falar com quem quer que seja e insistem animadamente em saber outras questões em que possam ser úteis. Mais alguma questão em que possa ser útil? Tenho tantas, caro operador, mas temo que não me possa ajudar. Não leve a sério, não é nada pessoal. E vá lá, diga ao Belmiro que "toda a gente precisa de rir" e chame-me otária se for só de vez em quando.

terça-feira, março 25, 2008

vendo, logo existo

"Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, indubitavelmente, o livro. Os outros são extensões do seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da vista; o telefone é o prolongamento da voz; seguem-se o arado e a espada, extensões do seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação.
(...) Se lemos um livro antigo, é como se lêssemos todo o tempo que transcorreu até nós desde o dia em que ele foi escrito. Por isso convém manter o culto do livro. O livro pode estar cheio de coisas erradas, podemos não estar de acordo com as opiniões do autor, mas mesmo assim conserva alguma coisa de sagrado, algo de divino, não para ser objecto de respeito supersticioso, mas para que o abordemos com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria."

Jorge Luís Borges, in Ensaio: O Livro

(acredito que Borges ficaria no mínimo embasbacado se soubesse que Claúdio Ramos acaba de editar um livro intitulado "Geneticamente Fúteis" que está em destaque nas prateleiras na Fnac - às vezes, a liberdade de expressão assusta-me)

segunda-feira, março 24, 2008

morrinha vem de morrer

Qual o sentido desta segunda-feira depois de um domingo de páscoa em que não sabemos quem tem que trabalhar ou não e porquê? Um dia assim, a cabeça ainda em compassos e amêndoas, princípios de primavera e o céu a cuspir morrinha. Morrinha, mas que merda é esta? Eu a descobrir no dicionário que morrinha é não só esta chuva estúpida que não se assume, como também pode ser significar "doença ligeira". Tudo a meio gás portanto. Meio. Chuva que não encharca, doença que não dói, trabalho que ainda não está definido, férias que não estão bem acabadas. Descobri que hoje não vou conseguir ultrapassar este estado desprezível de "morrinhenta". Mas pelo menos vou tentar ser coerente na coisa. Comerei meio pão com queijo, fumarei 10 cigarros e falarei apenas o essencial por preguiça de pensar em mais qualquer coisa. Deixarei unicamente sorrisos amarelados aos que me encontrarem na rua, meio litro de chá no bule, a máquina por fazer, a cama amarrotada e o banho por tomar. A seguir ao almoço, depois de alguns minutos a roçar suavemente as pernas num aquecedor a óleo, tentarei qualquer acção digna e nobre, mas não prometo grande coisa. Ressuscitar devia ser mais democrático.

quarta-feira, março 19, 2008

comer, beber, dormir e sonhar

Comi um bocado da massa. Os camarões estavam descascados e não feriram qualquer tipo de susceptibilidade. À tarde, enquanto pintava um canguru, apeteceu-me uma bifana do Sr. Júlio. Foi a Sra. Elisa, sua mulher, que a preparou e embrulhou amorosamente em papel vegetal. Regressei ao atelier e fiz um macaco a tinta da china que me começou a cheirar a cominhos da bifana. Abri à tesourada uma mini na tentativa de refrescar o desenho e as especiarias. Concluí que um abre cápsulas é fundamental em qualquer casa ou sítio de trabalho. Antes do jantar, a minha irmã preparou-me umas tostinhas com sardinhas oriundas das rias gallegas e quando cheguei a casa do me pai vi arroz de polvo na mesa. Sonhei com hipermercados, pareceu-me mau sinal. Preferia o mercado de peixe.
Devorei ao pequeno almoço - como de costume - três tangerinas biológicas que me tornam numa pessoa mais feliz e saudável. Almocei em casa da minha madrinha, que já não via há muito tempo, arroz de feijão com bifinhos de porco. A sopa de agriões estava óptima e sabia a antigo. No final ofereceu-me amêndoas coloridas e um ovo de chocolate. Estou com sede. Decidi fazer um chá japonês. Não percebo a gente que não admite que somos selvagens.

terça-feira, março 18, 2008

há sonhos que são bem chatos

Sonhei a noite toda que estava a comprar camarões. Um mercado de peixe estreito e comprido, o cheiro que não sei definir, o gelo sujo de onde os animais quase vivos submergem. Não havia mais nada a não ser camarões, nada de petinga, nada de solha, só camarões. Parei no primeiro balcão, não conseguia decidir o que levar. E se são frescos, e se são saborosos, e se são caros, e se os do balcão do lado são melhores que estes, e se tudo isto não passa de uma lúxuria, ai jesus e se eles não queriam ter morrido e eu para aqui a apreciar cadáveres. Este é o ponto de viragem. Adorava comer camarões até hoje, descascá-los bem descascadinhos, tirar-lhes as patinhas moles primeiro, depois o invólucro duro do corpo e sugar as cabecinhas com cuidado para não tocar nos bigodes que podem picar. Logo no primeiro balcão, comecei a imaginar aquele grupo de bichos enterrados no gelo como se fossem uma grande família. Quantas gerações de camarões irei eu indiferentemente dizimar no estômago? Hum, aquele ali dos bigodes compridos tem aspecto de pai, o outro pequenino do canto foi o filho que não teve tempo de crescer, e aquele mais mole e afrouxado talvez seja o avô. Os mais brilhantes seriam as fêmeas pois está claro, olha aquela que bonita que era, devia ser galada pelo outro machão dos bigodaços compridos.
Andei mais um bocado pelo corredor estreito e comprido. Não comprei nada. O mercado estava para fechar e os vendedores começavam a reunir as famílias em caixas grandes de esferovite daquelas que parecem sempre sujas.
Levantei-me, gelada. Perguntei à minha avó o que estava a pensar fazer para o almoço: “ Massa com camarão e bróculo”. Tentei estabelecer uma lógica para tal coincidência, mas rapidamente fui invadida por um sentido prático da vida.
E se a fome apertar vou comê-los sim senhora, não posso ser hipócrita, logo eles que me sabem tão bem, ai pai mãe avó filho desculpem, afinal vocês se calhar nem são uma família porra, e sabe-se lá se sofreram ou não, também hão-de comer os outros que estão ao vosso lado, para além de já ter ouvido que sois uns necrófagos do pior e vos alimentais de qualquer resíduo orgânico que se encontre no mar, ou seja, o que vocês apreciam mesmo é um cadaverzito como nós, seus malandrecos.

s/ título

“Recordar-se não é o mesmo que lembrar-se; não são de maneira nenhuma idênticos. Podemos muito bem lembrarmo-nos de um evento, rememorá-lo com todos os pormenores, sem por isso dele ter a recordação. A memória não é mais do que uma condição transitória da recordação: ela permite ao vivido que se apresente para consagrar a recordação. Esta distinção torna-se manifesta ao exame das diversas idades da vida. O velho perde a memória, que geralmente é de todas as faculdades a primeira a desaparecer. No entanto, o velho tem algo de poeta; a imaginação popular vê no velho um profeta, animado pelo espírito divino. Mas a recordação é a sua melhor força, a consolação que os sustenta, porque lhe dá a visão distante, a visão de poeta. (…) Os óculos dos velhos são graduados para ver ao perto; mas o jovem que tem de usar óculos, usa-os para ver ao longe; porque lhe falta o poder da recordação, que tem por efeito afastar, distanciar."

Soren Kierkegaard

quinta-feira, março 13, 2008

patinhos

Não sei se por cepticismo ou preguiça, nunca fui grande entendida a política. Uma vergonha. Mas parece-me que quase todos os políticos nacionais têm qualquer coisa de aborrecido. A começar pela desastrosa coincidência de maior parte serem feios ou desinteressantes fisicamente. Torna-se chato ver constantemente homens (não me apetece falar de mulheres muito menos deputadas) de gravata congelada e timbre de garoto estudioso. Sem querer parecer arrogante e muito menos maternal, quase todos os eles me provocam um sentido de protecção inconveniente. Apetece-me dar-lhes miminhos nas suas carinhas de shrek, abraça-los orgulhosamente por saberem fazer contas e adverti-los que é muito feio mentir.

Drama em imensos f(actos)

Dores de cabeça, pois, a insónia, os ladrões carinhosos, os cigarros mentolados noite fora. Almoço com pena de estar sem fome para as sardinhas fritas da afurada. Alto, vem aí gritaria, a Júlia foi à rua comprar a revista “Caras” e regressa sobressaltada: “O dono da padaria de Gondarém, o médico, matou os irmãos todos e depois matou-se a ele. Corre perigos de vida.” Pelos vistos depois de morrermos, ainda temos que nos sujeitar aos mesmos riscos de quem está vivo. Ele há coisas. Era médico, mas matou os irmãos todos por dinheiro, Santo Deus, onde já se viu. Já toda a gente sabe. Aparece a Lé na sala, larga o pedal da velha Singer e junta-se à tertúlia. “ Ah, se calhar esse médico era aquele homem que eu vi a morrer no Santo António.”
O telemóvel da Júlia toca ininterruptamente, a Liliana quer saber se aconteceu alguma coisa ao Zé, ainda parente de seu marido e que trabalha na dita padaria, não vá ele ter sido atingido com uma bala perdida ou com uma baguete ressequida. Ainda conseguem ser bem duras. A Lé abre bem a boca mostrando orgulhosamente os dois dentes da frente que lhe sobram e reclama a veracidade dos factos, vai mas é perguntar tudo à Zeza que ela é que sabe. A minha avó abre a “Caras”, pergunta se a menina do balcão também morreu e relembra as bolas de berlim que "eram tão boas".

quarta-feira, março 12, 2008

roubem tudo menos os sonhos

Descobri há poucos minutos na wikipedia (costumo ter uma insónia por ano, foi hoje) que ao dormir, os sentidos perdem-se pela seguinte ordem: visão, paladar, olfacto, audição e tacto. Mas não pensem os mais espertinhos que ao despertar será respeitada a dita fila indiana ao revés. Será então assim que acordarei amanhã de remelas penduradas nos olhos (a palavra "remela" é badalhoca) e por ordem de chegada: tacto, audição, visão, paladar e olfacto. Dizem eles que o tacto desperta ao mais leve toque sobre a pele. É o vigia do corpo adormecido. Claro está. Mas que chatice. Imagino-me agora submersa na imensidão deste silêncio a assaltarem-me a casa e eu a acordar só com a festinha do gatuno:
-"Menina, dá para levar umas coisinhas de sua casa?"
-"Dá sim senhor, desde que me deixe dormir em paz."

segunda-feira, março 10, 2008

sr. arrepiado

Hoje o lenço de seda molhou-se e encolheu. Os buracos da traça deixaram a água entrar pelo pescoço do velho e ele deixou-se ficar assim, parado, cheio de frio, arriscando a via dos condutores que tentam seguir a sua vida pelos pés escorregadios de tal burguês feitos de calçada granítica e trilhos deslizantes.

sexta-feira, março 07, 2008

eu (não) ro

Não há nada mais impessoal que o dinheiro.

quinta-feira, março 06, 2008

dor al dente

Dói-me um dente. Sinto-me rídicula. O dente que me dói já nem é dente, é um pedaço de qualquer coisa pendurado à gengiva, por isso sinto-me ainda mais idiota. Um resto de qualquer coisa que já nem é nada continua a incomodar-me. Absurdo. Curiosamente, é nestas alturas que me encho orgulhosamente de uma leve noção de poder, acreditando que ao beber uns copos de vinho tinto transformarei a raíz do meu dente numa pequena alma insignificante, embriagada e tonta.

felinos apagados

Sim, ele diz-se casado mas não me parece por plena vontade e desejo. Não sei até que ponto tenho direito de achar isto, mas bamos, isto da internet é meio esquizo, a gente até diz umas coisas e não se sabe de quem, nem quem existe, nem quem não existe. Voltando. Ele, de voz fina, “femifina”, pois, feminina mas sem o conseguir ser com a naturalidade de uma mulher, diz-me sem eu lhe perguntar nada: “ Já faz 16 anos que eu comecei a namorar para a minha esposa”. Assim, naquela garagem semi-escura como as garagens costumam ser, e eu a tentar ler na penumbra o que traz estampado na t-shirt preta ainda mais escura. Já consegui, a vermelho, assim, e a explodir dos peitos, a frase: “ Wild at heart”. E enquanto penso no coração têxtil do Alberto, a Dona Amélia queixa-se que está a fazer fisioterapia à cervical porque que deu um “jeito”. Um jeito que não deu jeito portanto, todas as línguas têm os seus processos paradoxais. Reparo que pintou o pouco cabelo que lhe resta de um roxo difícil de aturar, e as unhas roídas de vermelho tipo sangue de ferida no jardim infantil. Ao fim de alguns anos de suspeitas, começa a agradar-me esta dependência quase física que as mulheres têm da cor - as bases que tornam as caras castanhas no inverno, os lápis que disfarçam as olheiras, os vernizes que cobrem a transparência das unhas, as tintas que escondem as brancas. Considero este recurso à maquilhagem um acto criativo, com o devido factor de falsidade que é intrínseco aos caminhos da imaginação. O Alberto continua escuro e imóvel de coração selvagem cosido ao peito. Dona Amélia, ensine-lhe umas coisas.

ballad of big júlio

“Há dias que são só de dúvidas” diz o Sr. Júlio enquanto me faz a sandes de salpicão. Começo a duvidar se não deveria dedicar inteiramente o meu blog à observação deste senhor, sábio de mãos e memória, que por me parecer ter duvidado mais do que eu ao longo de todos estes anos de vida, duvido que tenha chegado a conclusões tão vagas quanto as minhas presentes.

segunda-feira, março 03, 2008

am(p)or(to)

Se o Porto fosse alguém era um velho de cabelo cinzento e duro, com um certo charme e lenço de seda ao pescoço atacado pela traça. Simpático mas teimoso. Daquelas pessoas com manias muito peculiares que só fazem rir os que não têm que conviver com ele diariamente. Sim, teimoso, talvez chato, talvez seco, inflexivel, coração granítico, pernas cheias de varizes, e de vez em quando uma maquilhagem que tenta esconder as entranhas envelhecidas. Tinha um negócio que já deu muito mas já não dá. Olhos claros, água, muita água, às vezes sujos, os olhos tão sujos com tantos outros (talvez também sujos) a olhar para eles, a vivê-los e a amá-los porque se diz que um é feito de ouro e outro de sal. Que terrível paixão tenho por esse velho que não me larga, esse manhoso que me faz sempre voltar, esse queixoso que entrega toda a gente à lamúria, esse cínico que ainda não percebi se também gosta de mim, esse tio avô solteiro que me oferece chocolates imperial no natal.

pêlos pouco mediáticos

A minha esteticista enquanto me arrancava animadamente os pêlos da raiz, contou que a naomi campbell estava no brasil e teve que ser operada de urgência. Tadinha. Os jornalistas ainda não sabem a quê, mas parece ser qualquer problema da parte abdominal.
Falava dela com um ar tão sério e familiar, que por momentos desconfiei que a top model era sua cliente e já tinha estado deitada naquela marquesa onde sofro volta e meia. Até se referiu à fulana como "a naomi", seguramente considerando que dizer "campbell" seria uma redundância.
Sem querer subir na tabela das preferências pessoais da esteticista cristina, agradar-me-ia que perguntasse se me estava a fazer doi doi em vez de falar da parte abdominal da outra. Assustam-me estas amizades criadas no papel foleiro da nova gente, como se fosse a naomi e não eu que lhe confiasse as entranhas da minha epiderme.

quinta-feira, fevereiro 28, 2008

papás e mamãs

Se voltasse a ser criança, ficaria ofendidíssima se os meus pais ao tentarem mostrar-me o que é uma complexa rede linguística, me dissessem doi doi em vez de ferida, popó em vez de carro, miau miau em vez de gato, ou tau tau em vez de "dou-te já uma coça".

quarta-feira, fevereiro 27, 2008

li verdade

"Os apetites são ou naturais e necessários, como o beber e comer; ou naturais e não necessários, como a intimidade com as mulheres; ou não são nem naturais, nem necessários: desta última espécie são quase todos os dos Homens; são todos supérfluos e artificiais, pois é admirável quão pouco é necessário à natureza para se contentar, quão pouco ela nos deixou para desejar."

Michel de Montaigne, in Ensaios

terça-feira, fevereiro 26, 2008

é de gente

Hoje sonhei que fui invadida por pessoas. Logo eu, que gosto tanto delas. Era uma praga de gente, quanto mais seres humanos via mais eu desesperava. Que horror. Eles e elas a invadirem os meus espaços físicos, mentais, emocionais, assim, gente por todo o lado em mim, eu tão esbatida no meio desse excesso de almas, se calhar não eram almas, eu sem saber como lhes dar um pontapé, sim, um pontapé bem dado no rabinho de cada invasor, era o que eles mereciam.

segunda-feira, fevereiro 25, 2008

é de mundo

A Júlia contou-me que o filho da ex-amante do marido morreu atropelado pelo metro. Apareceu lá em casa de recorte de jornal em punho e fui praticamente obrigada a ler a notícia de tal desgraça. Não se mostrou muito comovida pela morte do pequeno Edmundo, e mantinha uma cara séria que me pareceu previamente planeada. Pelos vistos mãe e filho viviam umas portas acima da dela. Perguntei-lhe se tinha ido ao funeral ao que ela respondeu imediatamente que não, mas a minha irmã foi e ninguém achou bem na família.
Pelos vistos a Júlia considera a mulher que lhe meteu as cornetas a verdadeira culpada de tal infidelidade. Pior. Ela própria se responsabiliza pelo delito sexual cometido por Nelo + Vizinha.
Eu trabalhaba noite e dia, chegaba a casa às tantas da madrugada, não lhe daba atençon, olhe, e ela ali a ligar-lhe, e ele, e ele, prontus, coitado do Nelo, olhe sabe como é que são os homens, assim sem a atençon da isposa, prontus, ela é que debia ter mantido a postura, a baca.
Gosto imenso do Nelo, conheço-o desde pequena e não me dizem respeito os seus devaneios nocturnos. Mas não consigo aceitar esta ordem de ideias e valores. Tentei mostrar-lhe, em vão, que todo o ser humano (homens solitários ou carentes incluídos) é livre para tomar certas opções. E que houve certamente um momento em que o Nelo pode decidir entre ficar em casa ou tocar numa das campainhas acima da sua.

gravidezes

Reparei que o Sr. Júlio faz festinhas na própria barriga enquanto fala de expressões algébricas e metalurgia. Quando se cansa do movimento, cruza as maõs secas e pousa-as paternalmente nesse excesso avolumado de si mesmo, onde talvez começe uma nova vida, embrião alimentado a tripas e vinho verde.