segunda-feira, março 31, 2008

lembro-te muito seriamente e ainda cheiras a naftalina

Ela recebia-nos todos os verões na sua casa com cheiro a naftalina. No primeiro de Agosto, depois de pousarmos as malas, entregava-nos as chaves de um velho armário com boiões de vidro que nos permitia o assalto massivo a diversos tipos de biscoitos. As mãos tão cheias de vontade, tão desprendidas de prazos,
calorias,
tretas da meia idade
(as crianças e os velhos não têm medo de salmonelas nem iogurtes fora do prazo).
Ao almoço bebia dignamente um - nunca mais que um - copo de vinho tinto que misturava com açucar. Trazia ao pescoço sempre o mesmo fio que carregava um segredo e por isso não o posso contar. O marido vivia só em fotografias e nunca tiveram filhos. Jurava a pés juntos que tinha um vizinho da frente chamado Pássaro Amarelo que limpava as escadas ao sábado e tinha mau feitio. Obrigava-nos a dar beijos num urso bem vestido com olhos feitos de botões verdes. Depois dos beijos, pousava o urso no parapeito da janela e eu acreditava que este, depois de beijado e arejado, nos reivindicasse uma espécie de protecção divina. Ainda acredito. Quando ela morreu deixou-me (para além das bolachas sem prazo de validade e da atracção pelo vinho) o mamífero, o fio de segredo pendurado e outras jóias que usava mas que eu não consigo tirar da caixa. Sinto-me tão feia com coisas valiosas no pescoço e nos braços.

sexta-feira, março 28, 2008

assunto sério

Incomoda-me gente demasiado séria. Não entendo porque é que se tem que ser sério. Parece-me uma atitude ingrata. Se me disserem que o homem da tabacaria é um homem sério eu até percebo, quer dizer que não rouba os clientes nem olha para as maminhas das garotas. Mas não é destes sérios que eu estou a falar, que afinal de contas não passam de pessoas honestas e muito bem. Falo daqueles que vêem todo e qualquer assunto como uma coisa que tem que ser levada a sério. Não te rias que isto é mesmo a sério, isto a vida não está para brincadeiras, anda mas é meio mundo a enganar outro meio. Gente chata portanto. Fala-se do joanete da vizinha e imediatamente apresentam a cara número 3 que é a expressão tensa que costumam usar quando se trata de problemas de saúde. Depois, quando os músculos da cara começam a cansar fazem aquela coisa com a língua, sim, aquele exercício português de levar a ponta da língua ao céu da boca e largá-la violentamente até se ouvir um T agudo que quase sempre é seguido pela frase "é a vida", que é como quem diz não te tenho mais nada para dizer para além de já estar cansada da cara. Há ainda os insuportavelmente sérios a trabalhar, como os assistentes das operadoras telefónicas que têm sempre o prazer de estar a falar com quem quer que seja e insistem animadamente em saber outras questões em que possam ser úteis. Mais alguma questão em que possa ser útil? Tenho tantas, caro operador, mas temo que não me possa ajudar. Não leve a sério, não é nada pessoal. E vá lá, diga ao Belmiro que "toda a gente precisa de rir" e chame-me otária se for só de vez em quando.

terça-feira, março 25, 2008

vendo, logo existo

"Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, indubitavelmente, o livro. Os outros são extensões do seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da vista; o telefone é o prolongamento da voz; seguem-se o arado e a espada, extensões do seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação.
(...) Se lemos um livro antigo, é como se lêssemos todo o tempo que transcorreu até nós desde o dia em que ele foi escrito. Por isso convém manter o culto do livro. O livro pode estar cheio de coisas erradas, podemos não estar de acordo com as opiniões do autor, mas mesmo assim conserva alguma coisa de sagrado, algo de divino, não para ser objecto de respeito supersticioso, mas para que o abordemos com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria."

Jorge Luís Borges, in Ensaio: O Livro

(acredito que Borges ficaria no mínimo embasbacado se soubesse que Claúdio Ramos acaba de editar um livro intitulado "Geneticamente Fúteis" que está em destaque nas prateleiras na Fnac - às vezes, a liberdade de expressão assusta-me)

segunda-feira, março 24, 2008

morrinha vem de morrer

Qual o sentido desta segunda-feira depois de um domingo de páscoa em que não sabemos quem tem que trabalhar ou não e porquê? Um dia assim, a cabeça ainda em compassos e amêndoas, princípios de primavera e o céu a cuspir morrinha. Morrinha, mas que merda é esta? Eu a descobrir no dicionário que morrinha é não só esta chuva estúpida que não se assume, como também pode ser significar "doença ligeira". Tudo a meio gás portanto. Meio. Chuva que não encharca, doença que não dói, trabalho que ainda não está definido, férias que não estão bem acabadas. Descobri que hoje não vou conseguir ultrapassar este estado desprezível de "morrinhenta". Mas pelo menos vou tentar ser coerente na coisa. Comerei meio pão com queijo, fumarei 10 cigarros e falarei apenas o essencial por preguiça de pensar em mais qualquer coisa. Deixarei unicamente sorrisos amarelados aos que me encontrarem na rua, meio litro de chá no bule, a máquina por fazer, a cama amarrotada e o banho por tomar. A seguir ao almoço, depois de alguns minutos a roçar suavemente as pernas num aquecedor a óleo, tentarei qualquer acção digna e nobre, mas não prometo grande coisa. Ressuscitar devia ser mais democrático.

quarta-feira, março 19, 2008

comer, beber, dormir e sonhar

Comi um bocado da massa. Os camarões estavam descascados e não feriram qualquer tipo de susceptibilidade. À tarde, enquanto pintava um canguru, apeteceu-me uma bifana do Sr. Júlio. Foi a Sra. Elisa, sua mulher, que a preparou e embrulhou amorosamente em papel vegetal. Regressei ao atelier e fiz um macaco a tinta da china que me começou a cheirar a cominhos da bifana. Abri à tesourada uma mini na tentativa de refrescar o desenho e as especiarias. Concluí que um abre cápsulas é fundamental em qualquer casa ou sítio de trabalho. Antes do jantar, a minha irmã preparou-me umas tostinhas com sardinhas oriundas das rias gallegas e quando cheguei a casa do me pai vi arroz de polvo na mesa. Sonhei com hipermercados, pareceu-me mau sinal. Preferia o mercado de peixe.
Devorei ao pequeno almoço - como de costume - três tangerinas biológicas que me tornam numa pessoa mais feliz e saudável. Almocei em casa da minha madrinha, que já não via há muito tempo, arroz de feijão com bifinhos de porco. A sopa de agriões estava óptima e sabia a antigo. No final ofereceu-me amêndoas coloridas e um ovo de chocolate. Estou com sede. Decidi fazer um chá japonês. Não percebo a gente que não admite que somos selvagens.

terça-feira, março 18, 2008

há sonhos que são bem chatos

Sonhei a noite toda que estava a comprar camarões. Um mercado de peixe estreito e comprido, o cheiro que não sei definir, o gelo sujo de onde os animais quase vivos submergem. Não havia mais nada a não ser camarões, nada de petinga, nada de solha, só camarões. Parei no primeiro balcão, não conseguia decidir o que levar. E se são frescos, e se são saborosos, e se são caros, e se os do balcão do lado são melhores que estes, e se tudo isto não passa de uma lúxuria, ai jesus e se eles não queriam ter morrido e eu para aqui a apreciar cadáveres. Este é o ponto de viragem. Adorava comer camarões até hoje, descascá-los bem descascadinhos, tirar-lhes as patinhas moles primeiro, depois o invólucro duro do corpo e sugar as cabecinhas com cuidado para não tocar nos bigodes que podem picar. Logo no primeiro balcão, comecei a imaginar aquele grupo de bichos enterrados no gelo como se fossem uma grande família. Quantas gerações de camarões irei eu indiferentemente dizimar no estômago? Hum, aquele ali dos bigodes compridos tem aspecto de pai, o outro pequenino do canto foi o filho que não teve tempo de crescer, e aquele mais mole e afrouxado talvez seja o avô. Os mais brilhantes seriam as fêmeas pois está claro, olha aquela que bonita que era, devia ser galada pelo outro machão dos bigodaços compridos.
Andei mais um bocado pelo corredor estreito e comprido. Não comprei nada. O mercado estava para fechar e os vendedores começavam a reunir as famílias em caixas grandes de esferovite daquelas que parecem sempre sujas.
Levantei-me, gelada. Perguntei à minha avó o que estava a pensar fazer para o almoço: “ Massa com camarão e bróculo”. Tentei estabelecer uma lógica para tal coincidência, mas rapidamente fui invadida por um sentido prático da vida.
E se a fome apertar vou comê-los sim senhora, não posso ser hipócrita, logo eles que me sabem tão bem, ai pai mãe avó filho desculpem, afinal vocês se calhar nem são uma família porra, e sabe-se lá se sofreram ou não, também hão-de comer os outros que estão ao vosso lado, para além de já ter ouvido que sois uns necrófagos do pior e vos alimentais de qualquer resíduo orgânico que se encontre no mar, ou seja, o que vocês apreciam mesmo é um cadaverzito como nós, seus malandrecos.

s/ título

“Recordar-se não é o mesmo que lembrar-se; não são de maneira nenhuma idênticos. Podemos muito bem lembrarmo-nos de um evento, rememorá-lo com todos os pormenores, sem por isso dele ter a recordação. A memória não é mais do que uma condição transitória da recordação: ela permite ao vivido que se apresente para consagrar a recordação. Esta distinção torna-se manifesta ao exame das diversas idades da vida. O velho perde a memória, que geralmente é de todas as faculdades a primeira a desaparecer. No entanto, o velho tem algo de poeta; a imaginação popular vê no velho um profeta, animado pelo espírito divino. Mas a recordação é a sua melhor força, a consolação que os sustenta, porque lhe dá a visão distante, a visão de poeta. (…) Os óculos dos velhos são graduados para ver ao perto; mas o jovem que tem de usar óculos, usa-os para ver ao longe; porque lhe falta o poder da recordação, que tem por efeito afastar, distanciar."

Soren Kierkegaard

quinta-feira, março 13, 2008

patinhos

Não sei se por cepticismo ou preguiça, nunca fui grande entendida a política. Uma vergonha. Mas parece-me que quase todos os políticos nacionais têm qualquer coisa de aborrecido. A começar pela desastrosa coincidência de maior parte serem feios ou desinteressantes fisicamente. Torna-se chato ver constantemente homens (não me apetece falar de mulheres muito menos deputadas) de gravata congelada e timbre de garoto estudioso. Sem querer parecer arrogante e muito menos maternal, quase todos os eles me provocam um sentido de protecção inconveniente. Apetece-me dar-lhes miminhos nas suas carinhas de shrek, abraça-los orgulhosamente por saberem fazer contas e adverti-los que é muito feio mentir.

Drama em imensos f(actos)

Dores de cabeça, pois, a insónia, os ladrões carinhosos, os cigarros mentolados noite fora. Almoço com pena de estar sem fome para as sardinhas fritas da afurada. Alto, vem aí gritaria, a Júlia foi à rua comprar a revista “Caras” e regressa sobressaltada: “O dono da padaria de Gondarém, o médico, matou os irmãos todos e depois matou-se a ele. Corre perigos de vida.” Pelos vistos depois de morrermos, ainda temos que nos sujeitar aos mesmos riscos de quem está vivo. Ele há coisas. Era médico, mas matou os irmãos todos por dinheiro, Santo Deus, onde já se viu. Já toda a gente sabe. Aparece a Lé na sala, larga o pedal da velha Singer e junta-se à tertúlia. “ Ah, se calhar esse médico era aquele homem que eu vi a morrer no Santo António.”
O telemóvel da Júlia toca ininterruptamente, a Liliana quer saber se aconteceu alguma coisa ao Zé, ainda parente de seu marido e que trabalha na dita padaria, não vá ele ter sido atingido com uma bala perdida ou com uma baguete ressequida. Ainda conseguem ser bem duras. A Lé abre bem a boca mostrando orgulhosamente os dois dentes da frente que lhe sobram e reclama a veracidade dos factos, vai mas é perguntar tudo à Zeza que ela é que sabe. A minha avó abre a “Caras”, pergunta se a menina do balcão também morreu e relembra as bolas de berlim que "eram tão boas".

quarta-feira, março 12, 2008

roubem tudo menos os sonhos

Descobri há poucos minutos na wikipedia (costumo ter uma insónia por ano, foi hoje) que ao dormir, os sentidos perdem-se pela seguinte ordem: visão, paladar, olfacto, audição e tacto. Mas não pensem os mais espertinhos que ao despertar será respeitada a dita fila indiana ao revés. Será então assim que acordarei amanhã de remelas penduradas nos olhos (a palavra "remela" é badalhoca) e por ordem de chegada: tacto, audição, visão, paladar e olfacto. Dizem eles que o tacto desperta ao mais leve toque sobre a pele. É o vigia do corpo adormecido. Claro está. Mas que chatice. Imagino-me agora submersa na imensidão deste silêncio a assaltarem-me a casa e eu a acordar só com a festinha do gatuno:
-"Menina, dá para levar umas coisinhas de sua casa?"
-"Dá sim senhor, desde que me deixe dormir em paz."

segunda-feira, março 10, 2008

sr. arrepiado

Hoje o lenço de seda molhou-se e encolheu. Os buracos da traça deixaram a água entrar pelo pescoço do velho e ele deixou-se ficar assim, parado, cheio de frio, arriscando a via dos condutores que tentam seguir a sua vida pelos pés escorregadios de tal burguês feitos de calçada granítica e trilhos deslizantes.

sexta-feira, março 07, 2008

eu (não) ro

Não há nada mais impessoal que o dinheiro.

quinta-feira, março 06, 2008

dor al dente

Dói-me um dente. Sinto-me rídicula. O dente que me dói já nem é dente, é um pedaço de qualquer coisa pendurado à gengiva, por isso sinto-me ainda mais idiota. Um resto de qualquer coisa que já nem é nada continua a incomodar-me. Absurdo. Curiosamente, é nestas alturas que me encho orgulhosamente de uma leve noção de poder, acreditando que ao beber uns copos de vinho tinto transformarei a raíz do meu dente numa pequena alma insignificante, embriagada e tonta.

felinos apagados

Sim, ele diz-se casado mas não me parece por plena vontade e desejo. Não sei até que ponto tenho direito de achar isto, mas bamos, isto da internet é meio esquizo, a gente até diz umas coisas e não se sabe de quem, nem quem existe, nem quem não existe. Voltando. Ele, de voz fina, “femifina”, pois, feminina mas sem o conseguir ser com a naturalidade de uma mulher, diz-me sem eu lhe perguntar nada: “ Já faz 16 anos que eu comecei a namorar para a minha esposa”. Assim, naquela garagem semi-escura como as garagens costumam ser, e eu a tentar ler na penumbra o que traz estampado na t-shirt preta ainda mais escura. Já consegui, a vermelho, assim, e a explodir dos peitos, a frase: “ Wild at heart”. E enquanto penso no coração têxtil do Alberto, a Dona Amélia queixa-se que está a fazer fisioterapia à cervical porque que deu um “jeito”. Um jeito que não deu jeito portanto, todas as línguas têm os seus processos paradoxais. Reparo que pintou o pouco cabelo que lhe resta de um roxo difícil de aturar, e as unhas roídas de vermelho tipo sangue de ferida no jardim infantil. Ao fim de alguns anos de suspeitas, começa a agradar-me esta dependência quase física que as mulheres têm da cor - as bases que tornam as caras castanhas no inverno, os lápis que disfarçam as olheiras, os vernizes que cobrem a transparência das unhas, as tintas que escondem as brancas. Considero este recurso à maquilhagem um acto criativo, com o devido factor de falsidade que é intrínseco aos caminhos da imaginação. O Alberto continua escuro e imóvel de coração selvagem cosido ao peito. Dona Amélia, ensine-lhe umas coisas.

ballad of big júlio

“Há dias que são só de dúvidas” diz o Sr. Júlio enquanto me faz a sandes de salpicão. Começo a duvidar se não deveria dedicar inteiramente o meu blog à observação deste senhor, sábio de mãos e memória, que por me parecer ter duvidado mais do que eu ao longo de todos estes anos de vida, duvido que tenha chegado a conclusões tão vagas quanto as minhas presentes.

segunda-feira, março 03, 2008

am(p)or(to)

Se o Porto fosse alguém era um velho de cabelo cinzento e duro, com um certo charme e lenço de seda ao pescoço atacado pela traça. Simpático mas teimoso. Daquelas pessoas com manias muito peculiares que só fazem rir os que não têm que conviver com ele diariamente. Sim, teimoso, talvez chato, talvez seco, inflexivel, coração granítico, pernas cheias de varizes, e de vez em quando uma maquilhagem que tenta esconder as entranhas envelhecidas. Tinha um negócio que já deu muito mas já não dá. Olhos claros, água, muita água, às vezes sujos, os olhos tão sujos com tantos outros (talvez também sujos) a olhar para eles, a vivê-los e a amá-los porque se diz que um é feito de ouro e outro de sal. Que terrível paixão tenho por esse velho que não me larga, esse manhoso que me faz sempre voltar, esse queixoso que entrega toda a gente à lamúria, esse cínico que ainda não percebi se também gosta de mim, esse tio avô solteiro que me oferece chocolates imperial no natal.

pêlos pouco mediáticos

A minha esteticista enquanto me arrancava animadamente os pêlos da raiz, contou que a naomi campbell estava no brasil e teve que ser operada de urgência. Tadinha. Os jornalistas ainda não sabem a quê, mas parece ser qualquer problema da parte abdominal.
Falava dela com um ar tão sério e familiar, que por momentos desconfiei que a top model era sua cliente e já tinha estado deitada naquela marquesa onde sofro volta e meia. Até se referiu à fulana como "a naomi", seguramente considerando que dizer "campbell" seria uma redundância.
Sem querer subir na tabela das preferências pessoais da esteticista cristina, agradar-me-ia que perguntasse se me estava a fazer doi doi em vez de falar da parte abdominal da outra. Assustam-me estas amizades criadas no papel foleiro da nova gente, como se fosse a naomi e não eu que lhe confiasse as entranhas da minha epiderme.