quinta-feira, outubro 02, 2008

momentos descontínuos

A Júlia pediu-me que lhe pintasse dois quadros para a sua casa nova.
Pinta-me dois quadrinhos?
Pinto, mas não sei quando.
Está bem, vou então comprar as telas ao chineses e já volto. Tenho um sofá cor de chocolate.
Comoveu-me o recurso à metáfora, mas desde quando é que ela deixou de dizer castanho?
Talvez tenha sido nesse dia que o Patrick deixou a pasta de amendoim no hostel. É estranho lidar com sítios de passagem. Por fora escreveu o seu nome a verde, mesmo antes de me oferecer um agulha de tricot para eu conseguir ler melhor os ficheiros de computador.
Sempre que me sento naquele terraço.
Sempre que me sento naquele terraço a fumar um cigarro, contrariada por fumar um cigarro e contente por ceder à contradição, eu sou o Porto. Eu sou isto e eu amo esta cidade tal como ela me ama a mim. As gaivotas histéricas, constantes, os dias em que sinto irritantemente feminina. Aquele sino da Sé, um golo de cerveja para olear a estrutura enquanto defino o que ainda tenho para fazer no tempo que me resta para acabar o turno. Entende-me, eu estou aqui neste terraço. Ainda há um lampião do lado de baixo da travessa que acende e apaga. Acende e apaga, sempre foi assim, tenho medo que se apague de vez e acabe o jogo. O jogo consiste em arranjar uma justificação para tal desordem. Olha, vai por ali uma pessoa a passar, se calhar vai acender nesse momento, mas também depende do tipo de pessoa. Ideias carregadas de cepticismo, a luz que acende e apaga. Nunca acreditei em soluções brilhantes.
No terraço ouvem-se os diospiros do jardim abaixo a cairem. Imagino-os doces e rasgados na relva, à espera que algum de nós os apanhe, mas que forma mais altruísta de se matarem.

2 comentários:

Ana Oliveira disse...

Dá vontade de ir para esse terraço contigo ver a luz acender e apagar. A dois pode-se fazer o jogo de ver quem adivinha primeiro quando é que ela vai acender ou apagar. E também porque adoro dióspiros, só de saber que eles se atiram dessa maneira tentadora...
Já pensaste que cores vais usar nas pinturas para condizer com o sofá da Júlia?

Mi disse...

Ler-te é sempre um prazer Mary.Usas as palavras de uma forma maravilhosa...Queria muito, um dia, sentar-me nesse terraço contigo a recordar histórias...daquela onde nós eramos tão felizes ;)

Beijos grandes