quinta-feira, fevereiro 28, 2008

papás e mamãs

Se voltasse a ser criança, ficaria ofendidíssima se os meus pais ao tentarem mostrar-me o que é uma complexa rede linguística, me dissessem doi doi em vez de ferida, popó em vez de carro, miau miau em vez de gato, ou tau tau em vez de "dou-te já uma coça".

quarta-feira, fevereiro 27, 2008

li verdade

"Os apetites são ou naturais e necessários, como o beber e comer; ou naturais e não necessários, como a intimidade com as mulheres; ou não são nem naturais, nem necessários: desta última espécie são quase todos os dos Homens; são todos supérfluos e artificiais, pois é admirável quão pouco é necessário à natureza para se contentar, quão pouco ela nos deixou para desejar."

Michel de Montaigne, in Ensaios

terça-feira, fevereiro 26, 2008

é de gente

Hoje sonhei que fui invadida por pessoas. Logo eu, que gosto tanto delas. Era uma praga de gente, quanto mais seres humanos via mais eu desesperava. Que horror. Eles e elas a invadirem os meus espaços físicos, mentais, emocionais, assim, gente por todo o lado em mim, eu tão esbatida no meio desse excesso de almas, se calhar não eram almas, eu sem saber como lhes dar um pontapé, sim, um pontapé bem dado no rabinho de cada invasor, era o que eles mereciam.

segunda-feira, fevereiro 25, 2008

é de mundo

A Júlia contou-me que o filho da ex-amante do marido morreu atropelado pelo metro. Apareceu lá em casa de recorte de jornal em punho e fui praticamente obrigada a ler a notícia de tal desgraça. Não se mostrou muito comovida pela morte do pequeno Edmundo, e mantinha uma cara séria que me pareceu previamente planeada. Pelos vistos mãe e filho viviam umas portas acima da dela. Perguntei-lhe se tinha ido ao funeral ao que ela respondeu imediatamente que não, mas a minha irmã foi e ninguém achou bem na família.
Pelos vistos a Júlia considera a mulher que lhe meteu as cornetas a verdadeira culpada de tal infidelidade. Pior. Ela própria se responsabiliza pelo delito sexual cometido por Nelo + Vizinha.
Eu trabalhaba noite e dia, chegaba a casa às tantas da madrugada, não lhe daba atençon, olhe, e ela ali a ligar-lhe, e ele, e ele, prontus, coitado do Nelo, olhe sabe como é que são os homens, assim sem a atençon da isposa, prontus, ela é que debia ter mantido a postura, a baca.
Gosto imenso do Nelo, conheço-o desde pequena e não me dizem respeito os seus devaneios nocturnos. Mas não consigo aceitar esta ordem de ideias e valores. Tentei mostrar-lhe, em vão, que todo o ser humano (homens solitários ou carentes incluídos) é livre para tomar certas opções. E que houve certamente um momento em que o Nelo pode decidir entre ficar em casa ou tocar numa das campainhas acima da sua.

gravidezes

Reparei que o Sr. Júlio faz festinhas na própria barriga enquanto fala de expressões algébricas e metalurgia. Quando se cansa do movimento, cruza as maõs secas e pousa-as paternalmente nesse excesso avolumado de si mesmo, onde talvez começe uma nova vida, embrião alimentado a tripas e vinho verde.

quarta-feira, fevereiro 20, 2008

hora do almoço

Há dias em que ficava eternamente a observar baratas ou pessoas sentada numa poltrona daquelas que nos sugam o cú.
Bebia um chá, e assistia serenamente à luta entre o peso na consciência por não estar a fazer nada versus a felicidade de poder exceder os limites da inércia.
Vou já sair de casa.

terça-feira, fevereiro 19, 2008

não se deve matar só porque é barato.

Já sabia que havia baratas na cozinha da minha avó. Mas ainda não percebi se me incomodam ou não.
Há uns anos houve uma praga gigante e a gente teve toda que fugir lá de casa que nem medricas asseados. Coitadinha da minha avó, acho que não tem idade para pegar no "necessaire" por causa de uma colónia de insectos, mas teve que ser. Pelos vistos dizem que são porcalhonas. A mim não me metem grande nojo, nem sequer as tento matar a meio da noite quando me levanto cheio de sede e as vejo que nem domingueiras a passearem-se pelos balcões. Depois, mal acendo a luz, transformam-se em pequenas vanessas fernandes frenéticas. Curto observar a metamorfose.
Não sei que faça com elas, mas irrita-me serem "baratas". Acho o nome pejorativo. Como se fossem pouco caras, vulgares, a verdadeira pechincha que Deus criou, os saldos Outono-Inverno da Natureza.

segunda-feira, fevereiro 18, 2008

especialistas

"O que precisamos fazer é arranjar casamentos, ou melhor, trazer de volta ao seu estado original de casados os diversos departamentos do conhecimento e das emoções, que foram arbitrariamente separados e levados a viver em isolamento nas suas celas monásticas. Podemos parodiar a Bíblia e dizer: "Que o homem não separe o que a natureza juntou"; não permitamos que a arbitrária divisão académica em disciplinas rompa a teia densa da realidade, transformando-a em absurdo."
Aldous Huxley, in 'A Situação Humana'

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

são quê?


Não sei se estou a ficar outra vez adolescente ou se nunca o deixei de ser, mas ultimamente o meu sentido de crítica tem aguçado consideravelmente. Achar toda a gente palerma, querer mudar o mundo e coisa e tal.
Não consigo perceber o dia dos namorados. Acho fraco. Cansa-me saber que existe um dia onde há gente a oferecer swatchs ao seu mais que tudo. Já para não falar de peluches, que eu considero um atentado à higiene mental e nasal de qualquer individuo que se preze. Quando era pequenina gostava de ursos, mas não eram tão peludos quanto os de agora.
Fui comer sushi com uns amigos, neste tal dia do valentino. Óbvio que o restaurante estava cheio de casais, uns mais entusiasmantes que outros.
Há muito que já não mando nos meus olhos e quando reparo, estou colada na mulher da mesa ao lado. Esta fulana de meia idade andava a espalhar más vibrações por todo o restaurante (era pequeno o que se torna perigoso). Tinha a bicanca afiada, o cabelo imóvel cortado pela orelha, e estava com um sobretudo cinzento que manteve enfiado durante todo o jantar.
Tinha os olhos muito juntos que emanavam do centro a palavra "frete", e na ponta descaíam ligeiramente, de cadelinha marota. Passou o jantar assim. E de cada vez que pegava nos pauzinhos, eu temia a saúde do marido.
No final, quando se levantaram para pagar ouvi o dono do restaurante a dizer: "Tome um cêgripe que isso passa".
Onde isto já chegou. Agora, mesmo com gripe, esta gente continua a achar giro celebrar um santo que não se lhe conhece a cara, mas que nos invade as montras uma vez por ano com corações vermelhos feitos de plástico.

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

razão e medida

Entro na tasca. Esta lá sr. Júlio sozinho e cumprimenta-me com os seus olhos semi-estrábicos e esbugalhados do vinho. A sra. Elisa adoeceu da vesícula e faz-me falta. Há um banco vazio atrás do balcão, onde ela costumava sentar-se que nem rainha à espera de clientes.
Olho para o presunto pendurando no tecto e parece-me o mesmo desde a minha primeira meia de leite. Gosto daquele presunto ali, um monte de carne inerte decorada a facadas incertas.
O sr. Júlio começa a falar do tempo em que se pagavam as coisas com feijões e ovos, e eu pergunto se quer que eu lhe traga grão de bico em vez de cinquenta cêntimos para pagar o descafeinado. Ele ri-se. E quando se ri assim, eu sinto-me invadida por aqueles olhos que entortam a cada gargalhada, e saiem de onde estavam tão quietos. Depois ensina-me palavras novas. Explica-me o que é uma padieira, que um alqueire de milho são 18 quilos e que razão é o rolo da massa com que se passa por cima deste. Divaga em números, medidas, quilos, metades, quartos e oitavos. Eu anoto o vocabulário novo num caderno vermelho e digo-lhe que ele deve perceber muito de matemática, ao que ele responde: "Se a menina quiser, resolvo-lhe já aqui uma expressão algébrica". Agradeço-lhe a dignidade e a ortografia. Antes de sair, acaba a aula dizendo: "A menina devia-se dedicar a estas coisas antigas. Estas coisas antigas têm valor, sabia?"

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

terça-feira, fevereiro 12, 2008

last news about familia com chamadas de graça

A Júlia veio informar-me que o homem da cabine trabalha no restaurante chinês lá da senhora da luz. Afinal foi precipitado chamar-lhe de machista. Pelos vistos as mulheres trabalham na loja e os homens fritam crepes. A loja, à qual eu chamei improvisadamente de "hao-hua" porque me pareceu um nome credível, tem um tolde vermelho a dizer "loja das lojas". Entre a ourivesaria sousa e o morgado sobrinho, a família decidiu que o seu estabelecimento era o melhor da rua. Gosto desta frontalidade desmedida.

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

o mistério da cabine

Todas as noites, ao lado de casa da minha avó, está um chinês a falar numa cabine telefónica. Isto começa a provocar-me uma curiosidade mórbida. Será que estão a falar
à pala para a China ou a encomendar artigos dos armazéns da Varziela?
Não é sempre o mesmo homem lá dentro. Ora um velho, ora um jovem. Devem revezar-se (acho que nunca tinha escrito a palavra "revezar").
Estava eu a ir para o Bonaparte e ouço uma voz histérica vinda da cabine. Reparo que é o chinês do costume. Cá para mim ele pertence à loja hao-hua ali ao lado onde costumo comprar ganchos para o cabelo, embora só tenha visto mulheres a trabalhar lá dentro. A família de chineses da rua senhora da luz deve ser meia machista. Já desconfiava.
Regresso do Bonaparte. Venho contente depois de algumas cervejas e cigarros legais.
Talvez tenham passado duas horas.
E ele ainda lá, com a sua voz aguda e penetrante falando esse mandarim que por momentos me apeteceu entender.

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

o sentido sem sentido


Hoje, durante a minha caminhada matinal tentei fechar os olhos e andar um bocado sem ver. Conheço aquela avenida desde pequenina, é sempre em frente, banda sonora marítima, nada que saber.
Toda a gente já fez isto uma vez ou outra, mas não sei como é que se costumam safar. Eu sou uma perra.
Não podia vir ninguém contra mim, nem vivalma no passeio, e os ciclistas desviam-se sempre tão rápido quanto aparecem.
Um segundo, dois, três, talvez quatro, perna firme, cabeça levantada, mas isto assim não dá - e abro os olhos num impulso quase desesperado.
Tento outra vez, novamente os olhos a despertarem incontrolavelmente.
Oh maria mas estás com medo de quê? O mar continua ali, o passeio não vai fugir e tu vais chegar a casa só um bocado mais tarde.
Pensei no "ensaio sobre a cegueira" de Saramago.
E percebi que se na vida tiver sempre medo de fechar os olhos e seguir em frente, estou completamente lixada.

terça-feira, fevereiro 05, 2008

just like a man

O meu irmão fez ontem 18 anos e ofereceram-lhe um cd do bob dylan.
Afinal este blog sempre serve para alguma coisa.
Viva a família Vasquez.

(durante a festa comovi-me ao vê-lo genuinamente bêbado e comecei a achar chato categorizá-lo de "pseudo-irmão")

sexta-feira, fevereiro 01, 2008

ballad of a human being

"Ética é estarmos à altura do que nos acontece."
Gilles Deleuze

Saltitava de blog em blog e encontrei esta frase. Tão certa. Tão curta.
Fiquei sem vontade de escrever.
E tornou-se inevitável fazer um copy paste.