quinta-feira, setembro 25, 2008

pensar ou não pensar

Entro no Sr. Júlio e não o vejo. Está o filho, que é parecido com ele, a servir vinhos e petiscos. Está ali ao fundo um cliente magrinho e fininho que por aqui passa muitas vezes. Costuma beber vinho verde de fato e gravata. O fato fica-lhe largo, como se celebrasse com o alcóol os tempos de jovem quando os tecidos ainda se colavam ao corpo musculado. O bigode é farfalhudo, quase de polícia, e também não lhe cabe. Uma cara triangular, todas as linhas a acabarem num queixo pontiagudo e decidido.
Peço uma cerveja.
Talvez me apeteça presunto mas não peço.
De repente aparece o Sr. Júlio à minha frente. Diz boa tarde menina, pega numa faca e começa a cortar o presunto.
- Mas eu não pedi presunto.
- Mas eu sei que a menina quer. Além do mais não me esqueço de retribuir favores.
- Dei-lhe as batatas sem esperar nada em troca.
- Há uma coisa que se chama consideração.

Calei-me, à espera de ouvir. E continuou a falar. Sobre os anos 50, sobre comunismo, sobre escrita.

- Menina, dê continuidade à sua carreira intelectual.

Sr. Júlio, creio que já o possa ter desiludido. Para além do mais, começou o Outono e passo os dias a sentir as palavras a secarem quando pego no computador. Vou para o atelier e só encontro o passado. Ontem lavei muito bem a casa de banho, desfiz-me da tinta seca que andava a entupir o lavatório. Inscrevi-me num mestrado para aprender uma teoria da qual eu não estou minimamente convicta. Percebo as teorias tão bem, mas não as consigo ver acontecer. Tudo o que estudo parece-me tão distante do presente.
Hoje estou de facto preocupada se a sopa de alface vai ficar cremosa e se a vitela não endurece. Estive a arrumar a cozinha e deitei uma data de legumes fúnebres que me fizeram sentir viva.

terça-feira, setembro 16, 2008

35

Sou o número 35. Há uma folha de rascunho à porta da secretaria onde se tem que escrever o nome e o número de chegada. Havia uma Vânia que era o número 34, como depois só havia branco escrevi 35 tracinho Maria. Depois é-se atendida sabe-se lá quando. Pelo menos na segurança social dizem-nos a hora prevista. Aqui temos uma cambada de gente com cara de impaciente ( se a palavra bicha aterroriza qualquer um, a própria coisa em si desmotiva o mais zen dos monges) e cabelos oleosos. Não sei se é de ser tão escuro neste corredor, mas algo se pasa com o cabelo deste pessoal. Parecem ter todos os pés secos como eu. A vida é mesmo um monólogo.
Bom, voltando à questão das filas. Hoje de manhã também fui ao banco. No banco tive que tirar um papelzinho que dizia "001" e por isso fiquei contente. Apesar do deserto da sala, o homem do banco carregou no botão que fez com que aparecesse o número 001 numa televisão. Dirigi-me ao balcão respectivo e eis senão quando começou mal o dia. Como já referi várias vezes neste blog, não consigo suportar gente que está ao balcão que nos trata como bebés insolentes. Não se lhe podia fazer uma pergunta que aquele ser de fato e gravata por fora porque por dentro era um trapo humano, ficava aborrecido chegando a explusar-me discretamente daquela agência.
- "Na outra de S.Lázaro é que se calhar resolve melhor isso".

Depois cheguei aqui e vejo este papel. Penso:
- Se hoje não fosse o último dia para fazer esta merda.

Vou ter que esperar, não é tão mau assim. Não sei porque nós, humanos, não conseguimos muito bem esperar. Até nem tenho nada de extrema importância para fazer esta manhã. Até pode ser adiado o que teria para fazer. Mas bom, não me apetece estar na bicha. Deixei lá o meu nome com um número na folha de rascunho (que pode ser aldrabada e modificada sem que ninguém dê por isso) e vim comigo para a sala dos computadores.
Não sei o que terei deixado lá.
Um possível lugar marcado.
Um número e uma assinatura.
Os pés secos reflectidos nos pés dos outros.
A vontade de receber um jacto de água que nos invada os corpos, se entranhe nos cabelos, o sebo bem lavadinho, os papéis das propinas desfeitos, a folha de rascunho sem números ou nomes - uma mancha de tinta uniforme, desejos borratados de sermos atendidos anotados por uma BIC.

quinta-feira, setembro 11, 2008

ei-los gios

Recebi um souvenir de Benidorm, enterneceu-me aquele golfinho de plástico. É um golfinho transparente e lá dentro cabem coisas como conchas, água, mini flores plastificadas. Agrada-me especialmente por ser multifuncional. A cauda do golfinho serve como abre cápsulas e o lombo tem um iman para se quisermos decorar o frigorífico. Algures no corpo transparente plastificado do bicho diz "BENIDORM".

- Toma Maria, trouxe isto para ti de Benidor.
(e enquanto admirava encantada a ausência do "m")
- Obrigado, estás maluca, escusavas de ter trazido, não queria que gastasses dinheiro comigo.

Logo a seguir pensei na frase estúpida que tinha dito.
Não percebo porque é que costumamos recusar prendas, não me parece uma atitude propriamente educada ou sensata. É como quando nos dão elogios, ficamos assim:

- Oh, obrigada, não sou nada, até que há gente muito melhor.

Se nos criticam:

- O quê? Olha mas é para ti.

Mas pior que tudo isto é não saber explicar como se gosta de uma prenda que nos deram. Eu sei que sou absurda porque sofro este dilema. A racionalidade é um leão domesticado. Se não fizer cara de espanto ela ainda vai pensar que vou deitar o golfinho fora, ai o que é que vou dizer para ela perceber que gostei, que valeu mesmo a pena ter gasto o que gastou, mas que porra de pensamento calculista este que eu tenho.
Talvez não suportemos a ideia de existência, não duvido que sejamos demasiado pequenos para isso.

(que seca, estou cada vez mais moralista embora não suporte moralistas - fico a tremer de um olho quando vejo aquela vice presidente do Mccain, orgulhosa mulher e mãe, não sei quê Pallin, caçadora de renas ao fim de semana, anti quase tudo que defendo e não defendo assim tanta coisa, pro tudo que considero desumano e insensato)

quarta-feira, setembro 03, 2008

romance suspenso

Passamos a vida à procura de coisas.
Não é uma grande conclusão, esta. Mas julgo ser verdade. A verdade nunca pode ser repetitiva porque é verdade e repete-se sempre de maneiras diferentes. A mentira é como os prédios, crescem onde quisermos, da forma que mais convenha ao senhorio e aos condóminos. E por ser de natureza calculista - a mentira sujeita-se a passar a ser uma coisa monótona com muito menos interesse. Afinal não sei, de repente parece que tudo o que disse até agora (pouco ou nada) deixou de fazer sentido.
Voltemos às pessoas que existem. Nunca poderia ser escritora.
Ela chegou aqui de calças brancas justas, isso, brancas e justas, e nem sequer se notavam as cuecas ou a mínima nódoa. Camisa preta acho eu que era preta, lembro-me apenas do decote e dos botões. Reparei também na traseira dos sapatos que me pareceram asas em vez de solas. Eram moles e silenciosos, não que as asas sejam assim.
- Venho ter com uns amigos.
E os amigos lá estavam, afinal era só um. Ela quis enganar-me com o plural, a marota. Não sei se queria mentir.
A parte mais picante fica para depois. Posso adiantar que não vi nada senão uma manta cor de laranja que tapava duas pessoas.
Por agora sinto-me apenas cansada de mapas, museus em ponto minúsculo, ruas que não estão lá, restaurantes que só sei onde estão se estiver a ir para lá com pés e não com as mãos. As bic nunca encaixaram bem no meu dedo, não sei porquê.
Passamos a vida à procura de sítios que não existem. Quando passam a ser verdade, há que nos entreter com a próxima mentira.
Isto não é um cliché, parece-me demasiado verdadeiro.