segunda-feira, abril 28, 2008

hoje não tenho idade

A minha avó faz hoje 87 anos. Quando cheguei a casa para almoçar estava sentada no sofá, no lugar que é só dela. Agarrei-a, disse "parabéns avó", e quis que aquele abraço durasse para sempre, que eu me tornasse rugas e ela cabelos castanhos, quis perceber porque é que todo o seu corpo está mais próximo da terra que o meu, as costas a fazerem um ângulo recto com as pernas, os olhos na alcatifa rasgada.
Costuma dizer com um ar cómico que é velha e que "quem de novo não vai, de velho não escapa". Mas hoje, olhar para ela no sítio de sempre e de camisola arranjada por causa das visitas, fez-me perceber algo muito parecido com a eternidade.
E que isto de morrer pode ser para todos, mas gostar de alguém desta maneira é muito mais complexo e se um dia eu for avó vai ser ela a amar os meus netos.

quinta-feira, abril 24, 2008

a gaja que estava ao balcão

Uma repartição de finanças improvisada no primeiro andar de um prédio escuro. Três mulheres atrás de secretárias beges anos 80. De repente começo a imaginar a Roménia, país onde nunca estive. Três mulheres atrás de secretárias beges. Não, afinal não são mulheres, são seres assexuados. Pela posição, fazem lembrar três cactos dispostos em linha recta.
À primeira, dou-lhe a alcunha de castelo de areia. Parece compacta na forma mas frágil no conteúdo. Assim, de camisola bege, cara bege, sentada atrás da secretária bege. Areia, muita areia, e de tanta areia e tão seca - o castelo acaba por se desfazer e eu não consigo pensar mais sobre ela.
A segunda tem cabelos muito encaracolados e exibe orgulhosamente anéis grandes de plástico. É a menos monocromática. Olho para o meu ticket e desejo que o número 93 me leve até aquele monte de esperança.
A terceira é a pior de todas. Não é velha nem poética como a primeira, e a léguas de ser tão afirmativa como a segunda. É um pedaço de ranheta de anteontem. Usa base densa e foleira que lhe tinge os pelos do buço da cor do produto. Parecem maiores assim pintados.
É a que me calha na rifa.
Não me adiantou grande coisa, o cacto ranhento que deve comer chocolates antes de ir para a cama, não se lhe podia fazer perguntas que ficava logo afectada por atender alguém contabilisticamente inculto e desinteressante. Informou-me com um ar muito sério que pertenço à categoria B e que por isso devo pedir o impresso B na altura de declarar o IRS.
Cala-te, e faz-me mas é uma canja com letrinhas cozidas que eu ponho-te a contar os B´s que há no meu prato.

quarta-feira, abril 23, 2008

a seguir por favor

Hoje vou às finanças tornar-me legal. Dizer-lhes que existo e que ganho de vez em quando. Comprar aquela coisa dos recibos verdes que toda a gente detesta.
Incomoda-me saber que vou passar a fazer parte deste jogo do gato e rato. Assusta-me a ideia de começar a debitar discursos amargos sobre os impostos, anda a gente a trabalhar toda a vida e os políticos com ordenados vitalícios, o estado é ladrão, leva metade do meu ordenado e se ao menos atendessem a minha avó no pedro hispano.
Esta situação de quem está a verdes parece-me desprezível. Não nos consideram reais trabalhadores. O nome prestação de serviços faz-me lembrar assim ao de leve a palavra prostitução.
Mas hoje, apesar de toda a revolta que vislumbro no futuro, de quem eu tenho mais medo hoje, sim - é da gaja que vai estar ao balcão.

mini

Deus dá lentes a quem não tem olhos.

segunda-feira, abril 21, 2008

milhões de tão pouco

Se ganhasse várias vezes o euro milhões, daria toda a minha massa a ladrões, corruptos e novos ricos para que não tivessem que pensar mais em dinheiro.

Depois, o que sobrasse, distribuiria por gente honesta e amiga para que pudessem ter o bobi num jardim cuidado e observar a evolução dos grelos apenas na época certa.

quarta-feira, abril 16, 2008

bife ana

7 da tarde, hora da bifana.
Gosto de jantar ao fim da tarde.

- Sr. Júlio, qual é a sua palavra favorita?
- Olhe que nunca tinha pensado nisso menina. Deixe-me cá pensar. Acho que deve ser mais que uma. Já sei.
Acção. Apto. Preguiça. Seguir.

Dito isto houve uma conversa tão intensa que temo não a conseguir reproduzir. Das palavras fomos parar à guerra dos sexos e descobri que o sr.Júlio é um machista feroz. Não me incomodou nem um bocadinho. Ainda assim, apliquei-me afincadamente na discussão sabendo à partida que o homem não iria mudar de ideias. Defendia a primazia masculina com extrema convicção e via-se que já tinha pensado em todos os argumentos. Gerações e gerações de mulheres na cozinha e hoje em dia os grandes chefs são homens. Distraem-se muito facilmente, vão abaixo com qualquer coisa. Andam nisto o tempo inteiro, em baixo e em cima, mal dispostas, bem dispostas. Pior é quando querem ser as maiores do mundo, e se põe acima de tudo e todos com os seus delírios femininos. Menina, as mulheres nunca foram inteligentes, são seres burocráticos - disse.

hostel em volume

A australiana estava mortinha por falar com alguém. Viaja sozinha há meses. Fala alto, peço-lhe para falar mais baixo, ela fala mais baixo e desculpa-se dizendo que é australiana. Fala com dois mexicanos daqueles que olham para as mulheres assim muito de força e parece-me que Rachel gosta disso. Rachel tem um piercing nos lábios que não lhe permite fechar completamente a boca. Um dos mexicanos usa carapuço dentro de casa, o outro não tira o lenço do pescoço. Não parecem deslumbrados com nada. Rachel quer comprar vinho e eu tento vender-lhe porta da ravessa que é o único que ali tenho. Diz que quer mais barato e volta com um regional das terras do sado produto mini preço. One euro and forty five, ooohh that´s amazing, it´s so cheap Maria. Bebem a garrafa até ao fim, sem opinião. Rachel tem agora, à volta do piercing, os lábios quase castanhos, tingidos pelo sado.


Aparece uma americana a pedir uma pizza. São onze da noite. Fica deslumbrada com o facto de no Porto também haver home delivery. Essa não fala tão alto como Rachel, mas tem uma voz muito pior porque mais esganiçada. Tipo cadela que queria crescer e não conseguiu. Fala fala fala. Não sei para quem fala. Não me parece que queira ser ouvida sequer. Apenas ladrar.


As cinco italianas são tão mulheres e tão latinas que me chegam a incomodar. É a segunda vez que me vem pedir um secador de cabelo, não percebem como é que o hostel não providencia um secador de cabelo. Sentam-se nos puffs, sacam das suas mantas e escolhem um filme daqueles em que há um mau que ataca toda a gente. Bebem água e coca colas que não pagam na hora, é a filosofia do deixa ficar na conta. Tipo mercearia. Monopolizam a sala. O som está tão alto, ouço sirenes na recepção. Não lhes interessa falar com mais ninguém, têm-se umas às outras.

segunda-feira, abril 14, 2008

corações 2

A Alberta enviou uma mensagem à minha mãe:
"Bem haja pela companhia/cineminha/jantarinho. Gostei imenso da sua filhota. Um abraço muito grande."

Gosto deste affair entre a língua portuguesa e os inhos.Só ainda não percebi se revela um enorme carinho pelas coisas ou medo em assumi-las.
Sim, porque é só uma cervejinha de vez em quando. Depois um cigarrinho, quem sabe, já que não faz mal a ninguém. Amanhã se estiver calor vou usar aquele topzinho muito decotado. Depois talvez vá dar um beijinho à Alberta, seguido de um abracinho bem sincero e dizer-lhe de mansinho que esta vidinha é tão misteriosa que a devemos amar e respeitar, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza para que não nos passe assim muito ao lado.

(sábado fui a um casamento)

quinta-feira, abril 10, 2008

do tipo camarinha

Gostava de saber porque é que aparecem olheiras quando não dormimos.
"Ihhh, estás cá com umas olheiras. Estás de directa ou quê?"
As olheiras denunciam as nossas horas de sono o que pode ser chato se o colega de trabalho entender que hoje não vamos render tanto. Dormir é pessoal.
Duas covas cinzentas logo num sítio tão central e por uma questão de tempo, já vi coisas mais razoáveis.
E se agora ficássemos com uma mancha vermelha na ponta do nariz de cada vez que fizéssemos muito pouco cocó.
"Ih, estás cá com um vermelhão, vê-se mesmo que não cagaste".

quarta-feira, abril 09, 2008

de caras

" Os problemas são nossos, a cara é dos outros"

(dizia a minha avó paterna invadindo de pincel a cara da minha tia com pó de arroz; a minha tia tem trinta e tal anos, 4 filhos, estava cansada nesse dia e ia a casa da milucha jantar)

terça-feira, abril 08, 2008

corações, de alain resnais

A Alberta é triste, loira, olhos longes e azuis. É alta, quase gorda. Mãos bonitas. Já foi hospedeira de bordo e nessa altura roubava talheres e toalhas dos hotéis. Diz que que era muito bem disposta, cheia de namorados. Está desempregada. Vivia com uma cadela chamada "Ararat" que morreu há umas semanas. Desde então, a Alberta não consegue entrar em casa. Pediu a amigas e paróquias que a albergassem durante o luto. Ontem fui com ela e com a minha mãe ao cinema ver "Coeurs". À saída disse que o filme lhe veio mostrar que afinal não está sozinha no mundo. Fomos a uma pizzaria e ela quis saber se a sopa era caseirinha. Perguntou à minha mãe (comigo à frente) se eu era uma pessoa que olhava para dentro. Antes que a minha mãe respondesse, perguntei-lhe o que era olhar para dentro e ela continuou mais ou menos a ignorar-me.
Deixamo-la em casa, a primeira noite sem Ararat. Agradeceu o serão, pediu que rezássemos por ela. Dei-lhe um beijo e disse "beijos alberta" enquanto a beijava. Sei que não sei rezar. Fiz o caminho todo de regresso até casa com medo da solidão.

segunda-feira, abril 07, 2008

raffaello - as 3 graças

roma

O título chamar as coisas pelos nomes foi rejeitado. A galerista disse que não lhe soava bem a frase e perguntou-me "e que tal em inglês"? Eu estava precisamente a falar inglês na altura em que me ligou, primeiro dia como recepcionista num hostel, uma confusão de línguas, nomes, imagens, papéis - e respondi a tudo que sim. Sou poupada nos nãos que uso e tenho pena disso. Por momentos achei provinciano esse recurso à lingua inglesa. Como se a verdade não soasse bem só por ser dita na nossa língua. Então vá, bota-se a coisa noutro idioma que já não fica tão mal porque pouco passamos a sentir e tudo se torna mais fácil.
Deram-me português e é com ele que quero ser, embora possa estar com outras línguas. Em inglês nem sequer sabia como fazer esta distinção entre ser e estar, como se o " to be" me fosse servir para os dois.
Português não é piroso. Quero dizer "amo-te" em vez de "I love you", porque dentro de mim sinto amor, sim, amor, só amor, um amor imenso e love muito pouco.

quinta-feira, abril 03, 2008

woolf



O título da próxima exposição será "Chamar as coisas pelos nomes".

depurar

Já gostei de dar títulos aos quadros ou a uma exposição. Hoje em dia é um tormento. Como se reduzem todas as angústias, vontades, erros, dias, horas, minutos, segundos numa palavra? Não há palavra que mereça tanta coisa. Maior parte delas são ingratas e redutoras. Às vezes acho que devia haver um nome diferente para cada pessoa no mundo. Não seria assim tão complicado e acabavam-se os rótulos que cada família acarreta. Isto de dar nomes às coisas. Mas confesso que por vezes também não me custa assim tanto, especialmente quando se trata de adjectivar pessoas que não conheço. Por exemplo, a gaja da ervanária é feia e tem cara de enjoada. É também enjoativa, porque me enjoo só de olhar para ela. Tem cara de peixe estragado, os olhos demasiado cá fora e a boca a querer chegar aos pés. Pinta-se imenso e sempre da mesma maneira. Não gosto de mulheres excessivamente maquilhadas ao balcão de ervanárias, retira-lhes a credibilidade. Não consigo confiar nela nem pedir-he ajuda. É daquelas que diz "prontos" uns a seguir aos outros. Era gorda mas já não é. Espero que não tenha feito a dieta à base da depuralina, não vá ela amanhã apresentar-se ao trabalho para além de feia, doente do fígado.

terça-feira, abril 01, 2008

i don´t lamb messenger

A minha irmã de 14 anos é viciada no messenger. Passo o jantar a ouvir o tlim das janelas virtuais. A carne assada hoje soube-me a pixel. Raul acabou de entrar. Xalu acabou de entrar. Ana acabou de entrar. Agora é a vez do Toni e do Johnnie Johnnie. "I lamb iu" diz um deles. Isso vem de lamber ou de amor? Venho ao computador e a festarola ainda a processar. Toda esta tertúlia fragmentada a entrar nos meus ouvidos, olhos, pensamento. Continuam a "mensajar" que me adoram, que estão à espera que eu responda, que têm saudades minhas. O nick de um é : "sobervivi ao encino portugez", um gajo com piada esse. Invadem-me com fotografias da escola primária como se fosse há muito que por lá passaram. Sempre estranhei este interesse massivo da adolescência por fotografias quando todos éramos bébés cagões. Olha que querida que eu era. Agora dou beijos com cuspe e tenho pêlos púbicos mas já me habituei a eles. Os das axilas é que são uma chatice.

sms

Hoje, enquanto pintava um pássaro que queria que se assemelhasse a um cão, entra-me pelo atelier adentro (gosto de palavreado oral) uma gaivota. Bate as asas freneticamente, dá duas voltas e sai. Estava furiosa, nem tive tempo de lhe sacar o tamanho ou o olhar.
Há quem deteste gaivotas, eu não. Já ouvi relatos assustadores de pessoas que estão de relações cortadas com a espécie. Por exemplo, a Catarina deixou de gostar de gaivotas quando uma lhe bateu à janela do quarto de hóspedes a meio da noite. O vidro, o bico, o tic tic no vidro, deixem-me entrar, mas o que é isto, será um ladrão, tic tic e um medo do diabos. A Catarina vive sozinha e por isso não gosta de acordar à noite com sons que não conhece. Naquela noite teve imensa coragem, levantou-se, foi até à próxima divisão e assim percebeu que tipo de assaltante se tratava.
A minha não teve que fazer barulho. A janela estava aberta. Acreditei por momentos que sabia que eu estava prá'li a brincar às metamorfoses, que aquilo no papel já tinha deixado de ser um pelicano para se transformar num cocker domesticável. Pare lá de ser subversiva e tenha respeito por nós que a gente ainda tem muito orgulho de sermos os únicos a conseguir voar.