sexta-feira, dezembro 26, 2008

Lina

Não gosto das amigas da minha avó, nem do natal, nem de ladrilhos de marmelada.
A Lina ligou, eu atendi e sabia muito bem quem era, mas tentei passar por desconhecida.
- Sim, eu vou chamá-la.
A Lina liga muito de vez em quando, no natal ou para anunciar a morte de alguém. Tem cara de gaivota velha, líder de um bando de pássaros que há muito a não segue.
À medida que a minha avó foi ficando cansada de viver, e deixou de a poder convidar para jogar canasta às quartas, ela nunca mais quis saber. Safada da Lina, queria era os pãezinhos de leite com fiambre e a tarte de maçã. Eu bem a vi outro dia no Pingo Doce a comprar pensos higiénicos.
- Menina estes são dos grandes?
- São, minha senhora.
Quando chegava a casa, percebia que era dia de canasta pelo cheiro das águas de colónia trazidas de Vigo. No bule, um resto de chá preto já demasiado amargo. Procurava então restos de bolos e pãezinhos, as senhoras deixam sempre um ou dois. Agora deixam o tempo cuidar delas e dos outros, à espera que o Fado lhes toque à porta, esse que lhes roubou os maridos.
(a não ser a Linda que compra pensos higiénicos para as netas e usa botas de tacão)
Caramba, o que teremos que fazer para que o presente não se divorcie de nós. Eu quero-lhe pedir em casamento, prometo-lhe ser fiel.
A velhice mais terrível é essa, aquela em que o que tempo não desfaz as marcas de baton nos guardanapos de linho, as migalhas dos pães de leite perpetuadas nas tardes de quarta feira sem lanche nem jogadas.

segunda-feira, dezembro 15, 2008

manhã

Preocupam-me ainda as coisas do passado. Escrevo como se o poema fosse uma realidade, ou dele nascessem as folhas da vida, com o verde esplêndido de uma súbita primavera. Sobreponho ao mundo a linguagem; tiro palavras de dentro do que penso e do que faço, como se elas pudessem viver aí, peixes verbais no aquário do ser. É verdade que as palavras não nascem da terra, nem trazem consigo o peso da matéria; quando muito, descem ao nível dos sentimentos, bebem o mesmo sangue com que se faz viver as emoções, e servem de alimento a outros que as lêem como se, nelas, estivesse toda a verdade do mundo. Vejo-as caírem-me das mãos como areia; tento apanhar esses restos de tempo, de vida que se perdeu numa esquina de quem fomos; e vou atrás deles, entrando nesse charco de fundos movediços a que se dá o nome de memória. Será isso a poesia? É então que surges: o teu corpo, que se confunde com o das palavras que te descrevem, hesita numa das entradas do verso. Puxo-te para o átrio da estrofe; digo o teu nome com a voz baixa do medo; e apenas ouço o vento que empurra portas e janelas, sílabas e frases, por entre as imagens inúteis que me separaram de ti.

Nuno Júdice

sábado, dezembro 13, 2008

pistolleto

driving with seixas

No fundo, tenho um fraco pela trivialidade. Atraem-me as mãos normais dele no volante. A conversa mediada pelo retrovisor, os taxistas vivem no mundo do reflexo e de algum silêncio.
Ele pergunta-me:
- Do you speak english?
Eu:
- Yes.
- So, listen this song.

E calámo-nos. Na rádio, a voz rouca e kitsch de Chris Rea:
I sing this song
To pass the time away
Driving in my car
Driving home for christmas


Rio-me. Rimo-nos.
Digo-lhe que é bom sabermos inglês porque assim percebemos as letras das canções.
Ele diz-me várias coisas em tempos diferentes da conversa mas que eu decidi juntar aqui:
- Tem razão menina, é que a música vem sempre acompanhada de poesia. Eu faço o turno da noite. Quando não há clientes, eu falo com os colegas ou leio um livro. Sou Seixas de nome, o meu avô também era Seixas e era conhecido lá na zona do Tua. Não há nada de anormal em trabalhar à noite, durmo sempre das 8 da manhã até às 4. Só não levo pessoas ao Marquês, é tudo para a prostituição, fecho as portas assim por dentro e abro o meu livro.

segunda-feira, dezembro 08, 2008

paterna

Não sei se é de termos medo das imagens, isto é, não sei se deveríamos controlar o tempo a que nos dedicamos a elas, ou seja, porque será que tapamos os olhos nos filmes de terror mas nunca deixamos de espreitar.
A minha avó estava bonita, assim, mesmo morta, mas já não sei se era ela ou não. Primeiro custa-me dizer que ela estava morta, como é que alguém morre, e que palavra mais arrojada - morte. Os homens inventam palavras sem saberem o que elas significam. Não há nada mais individualista que um caixão, se ao menos fossem mais largos e houvesse espaço para um compartimento cheio de bebidas, comidas e objectos. Chamem-me materialista, mas eu quero ir lá para baixo com meia dúzia de coisas que gosto, uns cadernos e algumas fotografias.
Voltando ao respeito pelas imagens
(ou simplesmente a ver vamos se eu reconheço qual é o meu estofo para ver um homem desdentado a pousar a minha avó lá debaixo dos nossos pés e depois pegar numa pá prefigurando uma cena de filme de terror série d)
Quanto tempo poderemos nós olhar para alguém que gostamos assim, inerte. As mãos tãos frias, ela nunca tinha as mãos frias, durante anos coçou-me as costas e o cabelo com as unhas sempre a respeitar um tamanho sensato, nunca demasiado arranjadas (detesto unhas perfeitas) e a pele bem tratada com cremes baratos.
Mas quais são as mãos que durante o inverno nos invadem o príncipio das costas,
ali naquele espaço de sedução entre a camisa e um par de calças,
(o idiota que inventou a palavra lombar não fazia a mínima do que falava)
e não nos fazem sentir o frio de fora que está a entrar para dentro,
entrar para dentro é um sublime pleonasmo a meu ver,
eu a pensar: espero que ela não se farte já
eu a pensar: espero que hoje se lembre de me coçar as costas antes de eu adormecer no sofá cama do hostel, cheia de medo que me peçam uma coca-cola a meio da noite, nesse espaço infinito entre a memória e um frigorífico.

quinta-feira, dezembro 04, 2008

merhaba

dentro

O homem entra na camioneta com um terço na mão, ostentanto a sua fé e poder.
É grande, sujo, usa gravata e tem barriga. A gravata repousa resignada na curva da pança e não consegue chegar até ao cinto. As gengivas são escuras, ainda que não as tenha visto.
O homem usa gargalhadas secas e altas para reagir à série cómica e estúpida que passa na televisão. Acho depravado tantos passageiros serem obrigados a ver o mesmo filme e a ouvir as gargalhadas de homens como este.
Gosto de ir ao cinema porque está escuro, podemos chorar à vontade sem que o vizinho da cadeira 26 nos desvende a cara molhada. Mais: no cinema não há a possibilidade de escolher a posição da cadeira. Na primeira meia hora de uma viagem entrego-me à angústia de não saber se devo ficar com as costas verticais ou então carregar naquele botãozinho e reprimir as pernas do senhor de trás.
O homem sujo repara nos nossos sapatos lamacentos e começa a apontar com os dedos inchados para o tapete de entrada feito de papel de jornal. Tínhamos que ter passado os pés nas notícias antes de entrar na camionete. Perdoou-nos de forma indecisa por sermos estrangeiros.
As mulheres à minha volta usam lenços na cabeça, normalmente às flores, que denunciam por vezes o comprimento do cabelo. Imagino-me a arrancar-lhes o tecido e a cultura - não sei se é lata ou não - mostra-me esse preto do teu cabelo, será um pouco ondulado, aposto que é brilhante, se te mexeres ele mexe contigo, e a cor das tuas pernas, terás varizes internas ou externas, não faz mal nem uma coisa nem outra.
Esqueço-me das cores delas, das gengivas do outro, da chuva lá fora.
Abro "Memórias de Adriano" e recomeço a viagem paralela.