sexta-feira, outubro 30, 2009

pedrinhas e petróleo

Está toda gente muito preocupada com o calor. Que é verão no outono. Que andamos pra´qui de havaina enquanto a bota de inverno espera mofenta no armário. Que o mundo está doido.

Ontem cheguei a casa a suar. Eram sete e meia e vi o Adriano outra vez. Estava na esplanada com o Toni, companheiro de escadotes e bagaços. O Toni usa uma placa muito mal feita que me deixa sempre angustiada. Os dentes são demasiado brancos, assim para fora, tipo desenho animado. Irrita-me o Toni. Mal os vi, comecei a andar muito rápido em direcção a casa. Tropecei num meco, disfarcei. Entrei em casa, subi velozmente a escada como se aqueles dentes grandes e mal feitos tivessem pernas histéricas e pudessem correr atrás de mim.
Sentei-me no sofá de veludo, as repas colavam à testa. No Telejornal, apareceu uma jovem repórter na praia a entrevistar pessoas. Parece-me absurdo entrevistar pessoas na praia só porque está bom tempo e não é suposto estar.

Veio então uma palavra à cabeça: piche. Eu vou escrever outra vez: piche. Piche. O tempo está descontrolado, os glaciares a derreterem, pois claro. Mas brincar entre baldes e petróleo é outra fruta. Hoje em dia qualquer mamã encontra facilmente uma praia de bandeira azul, onde a filhinha asséptica brinca responsável com a Hello Kitty de lantejoulas que não se pode partir. Tem lâmpadas económicas à venda no IKEA. Um eco ponto ao virar da esquina. Um blog onde poderá criar um movimento amigos do ambiente e organizar eventos eco-qualquer-coisa. Até aposto que o email do Al Gore está disponivel algures na internet, para quem quiser tirar dúvidas. Não devemos queixar-nos do calor, queixar é feio.

(cá para mim, os dentes do Toni e o piche são muito piores que as repas coladas à testa no final de Outubro)

jorge luis borges by diana arbus

segunda-feira, outubro 19, 2009

cê dês

O Joel não sabe aparafusar coisas.
(Joel, perdoa-me, mas isto aqui agora é um espaço de ficção)
Gosto dele assim, fica irritado com os bricolages. Eu estou que nem posso com bricolages. Hoje montei a garrafeira e a coisa dos cd´s. Peguei nos meus cd´s e nos dele e juntei-os assim aleatoriamente nas prateleiras do IKEA. Não dividi por estilos de música porque não me sinto confortável com certas metodologias nem seus resultados. Gosto de encontrar o cd de kuduro que o Dalton me ofereceu onde pensava estar o concerto de Keith Jarret que roubei ao meu pai.
E de repente, com a chave inglesa na mão percebi inesperadamente a minha vida:
- um monte de prateleiras desarrumadas
- a madeira é fina e velha
- algumas têm bicho mas nunca visualizo a morfologia do insecto
- as mais velhas, aquelas que estão em cima, caem sobre as outras que estão novas e belas e fica prá´li uma mistura esquiza entre densidade matérica e fragilidade histórica à espera que aconteça um novo big bang

Penso em palavras tipo "árvore" ou "origem". Abafo qualquer vislumbre de introspecção. Releio o papelinho explicativo do IKEA que descreve todos os passos que devo seguir. Rio-me, penso que o Joel vai ter imensas garrafas para encher a garrafeira e aperto com força a chave inglesa.

quarta-feira, outubro 14, 2009

1ª tentativa

Eu não queria ter tido aquela conversa. Estava sentada a comer um covilhete na Gomes a pensar como é que se fazia aquela porra daquela massa folhada. Aparece Adriano, o empreiteiro. O Adriano tem uma mulher asseada e pontual que se chama Ingrácia e é porteira do prédio onde vive. Se a idade dos filhos não enganar, eles devem estar casados há coisa de 40 anos. A filha é juíza, e o filho vive em Palma de Maiorca com uma alemã que conheceu durante a viagem de fim de curso.
Estava sentada a pensar na massa folhada, não sei fazer massa folhada assim. Adriano:
- Menina, posso sentar-me?
E senta-se. Perco a massa folhada e a imaginação matinal. Adriano cheira a álcool barato, costumo encontrá-lo numa taberna que se chama baca belha. Estão sempre os mesmo homens lá dentro e acredito que nunca estiveram outros desde 1900, data de abertura do estabelecimento. O álcool conservou a vida e os hábitos destes homens, que parecem carregar nas dentaduras o peso das serras em redor.
Sei que Adriano não usa dentadura porque os dentes dele são enormes e separados. Imagino o cabrito de domingo enfiado naqueles espaços vazios e mortos, o bagaço do baca belha a infiltrar-se veloz pelas rachas e a arder na garganta.
Adriano sentou-se e o tributo que presto às manhãs foi por água abaixo. Depois prás, para apimentar a coisa, ainda confessou que era poligâmico.
(não usou a palavra poligâmico)
Acabei o covilhete e disse-lhe que eu não era e que não gostava que o Joel fosse. Chamou-me egoísta. Que eu não sei respeitar a natureza humana, que isto é mesmo assim. Engoli o que me disse sem mastigar, não conheço a natureza humana para poder discuti-la. Pensei na Ingrácia sentada à porta do prédio a ouvir o som do elevador, mas acho que não foi por pena.


(Na semana passada o Gil disse-me que escrevo sobre coisas reais: aquilo que acontece, as pessoas que conheço, os pequenos nadas que vivo. Vim para casa miserável, com o gin tónico a borbulhar a pergunta o que é criar na cabeça e a esbofetear a artista que já conheci)

quinta-feira, outubro 01, 2009

por quem os sinos dobram

É tempo de diospiros. Caem pesados e abertos como dantes. Desconfio em silêncio, que, com o passar dos anos e a sé ali ao lado, começam a respeitar o que lhes diz o sino. Imagino-os quietos e obedientes na hora da missa. Depois, na hora da libertação em que tudo vale, caem esparrachados no chão, que é mesmo assim. Tento explicar o verbo esparrachar a um inglês mas não consigo. Nem sei bem se existe mesmo em portugês mas isso pouco interessa, porque há formas que não tem conteúdo e são formas na mesma. A poesia fica comigo e guardo-a com medo que não dure até à secretária.

(Um dia mando esta merda toda às urtigas: telemóvel, carro, computador. Este mês o telemóvel deixou de dar por uns dias, o computador apanhou água e não tem arranjo, o carro amuou no meio da estrada e não voltou a ligar, a objectiva da máquina nova caiu veloz no xisto duriense e partiu-se. Tendo a acreditar numa nova ciência oculta que pretende acabar com os I-phones de todo o mundo e chamar-nos à ciência dos diospiros, desses que vivem suspensos e caem, felizes e conformados ao tocar do sino)