quarta-feira, dezembro 09, 2009

a quem o ensino dobra

Era professor da primária. Doce e frágil, quase enjoativo de tão meloso. Contou-me que não aguentou mais, que virou-se para a directora de escola e pediu um tempo para ele. A pressão dos pais dos meninos era excessiva. De vez em quando recebia um telefonema de um progenitor idiota qualquer que lhe perguntava porque é que o garoto tinha tantos trabalhos de casa. Coitado do garoto, a natação e a playstation de certeza que lhe ocupam demasiado tempo. E qualquer dia ainda apanha a gripe A. Depois tem um sinal na cara de que não gosta e já revela alguns problemas de sociabilização devido ao dito cujo. É pois evidente que não lhe sobra tempo para aprender a nossa língua, a matemática, a geografia, essas coisas acessórias.
Voltando à vaca fria, o professor virou-se para a directora e pediu tempo para ele. A directora concedeu-lhe, e esta é a única parte boa da história. Deixou tudo e foi fazer o caminho de Santiago.
A minha mãe não pode chumbar os alunos. Dá cursos profissionais ao secundário e tenta formar técnicos jurídicos e comerciais. Tudo uma treta. Perdoem-me os inocentes. Adolescentes que nunca estudaram na vida pelas mais diversas razões, são agora pagos por nós para andarem pra´li a gastar o polegar com sms. Se tiram uma negativa a um exame, a professorinha tem que dar mais duas oportunidades para ver se passa o pequeno príncipe. Isto é a total preversão do ensino e engana professores e alunos. O professor fica pois, sem hipótese nenhuma de cumprir a sua função. Triste e desiludido, vai para as aulas dos cursos profissionais sem vontade de ensinar coisa alguma, porque simplesmente não é esse o objectivo do próprio curso. Os alunos, que agora têm a faca, o queijo e o telemóvel na mão, regojizam-se com o seu poder e ignorância. Depois saem no 12º ano e vão trabalhar para a Bershka ouvir música a decibéis que deviam ser proibidos, e dobrar camisolas já com borboto que lhes poupam a tarefa de pensar. Mas isso é só na melhor das hipóteses. Porque depois do canudo da mão, o garoto acha-se demasiado importante para fazer tal coisa
(convenceram-no disso), e prefere esperar outra vez com a playstation numa mão e o risco de apanhar gripe A na outra, de um trabalho como técnico jurídico ou comercial. Pura ilusão.

(a culpa não é dos garotos e trabalhar na bershka é tão digno como outra coisa qualquer, mas quisesse este governo formar pessoas e não números e tudo era tão diferente)

terça-feira, dezembro 08, 2009

quinta-feira, dezembro 03, 2009

sendo bernard n´ as ondas de virgina

Desde que me sentei nesta mesa sinto uma deliciosa confusão de incertezas, de possibilidades, de hipóteses. As imagens formam-se por geração espontânea. Sinto-me incomodado com a minha própria fecundidade. Seria capaz de descrever com a maior profusão de detalhes cada cadeira, cada mesa, cada comensal. O meu espírito zumbe por aqui e ali, pronto a cobrir todas as coisas com um véu de palavras. Falar, mesmo que apenas para pedir vinho ao empregado, é provocar uma explosão. O foguete é lançado aos ares. Os seus grãos dourados caem e fertilizam o solo da minha imaginação. O imprevisto desta explosão está na alegria de comunicar. Quem sou eu misturado com este desconhecido empregado? Neste mundo não existe estabilidade. Quem será capaz de exprimir o significado das coisas? Quem pode prever o voo que uma palavra descreve depois de dita? é um balão que plana sobre as árvores. E o esforço de conhecer é sempre inútil. Tudo é experiência e aventura. Constantemente formamos novas combinações de elementos desconhecidos. O que está para vir? Ignoro-o completamente. Mas no momento que pouso o copo sobre a mesa a memória volta. Estou noivo. Esta noite janto com os meus amigos. Sou Bernard. Sou eu.

quinta-feira, novembro 19, 2009

segunda-feira, novembro 16, 2009

páre, escute e olhe (quero ver este documentário)

Perdeu-se definitivamente o pudor.
Saio de casa apressada a pensar no haveria de dar à tia Lena nos anos. Uma medalhinha, pensei, depois de bater a porta. Ora aí está, uma medalhinha religiosa. A minha tia Lena converteu-se aos 45 depois de conhecer o homem da vida. A família estava convencida que a tia ia ficar a vida toda a cozinhar biscoitos de gengibre e a gastar os salários de funcionária pública com os sobrinhos. Enganaram-se. Numa excursão ao Egipto ela apaixonou-se por um senhor chamado Manuel Gregório. Casaram-se passados 4 meses depois do encontro nas esfinges. O Manuel Gregório era viúvo e católico convicto. Convenceu-a que temos direito à vida eterna em dois tempos.
Estava a chover e dirigi-me a uma ourivesaria muito perto de casa que vende ouro e prata em segunda mão. O estabelecimento é minúsculo, assim todo enviesado, não mais que 4 pessoas lá dentro. Eis que aparece uma loira perfumada chamada Vânia com um homem alto a botar corpo. Pareciam vila realenses descendentes de russos se é que isso já é possível.
Dei-lhes generosamente a minha vez enquanto me esforçava para sentir o que me queria dizer cada santa. Por momentos pensei que alguma pudesse pertencer a qualquer a vila realense russo e não achei grande piada.
O casal queria comprar uma capa para isqueiro em prata. Que coisa mais absurda. Meter um bic dentro e fazer de conta. A senhora da ourivesaria diz que não tem muita coisa, aliás, que a única capa que tem é uma em filigrana. A tipa olha para a capa de isqueiro em filigrana e diz isto para o homem encorpado:
- Oh babe, isto é um bocado à gay, não é?
O babe não responde. A mulher da ourivesaria também não disse nada e eu já tinha ouvido a voz da santa que me confessou querer fugir da Vânia e da loja enviesada.
- Babe, isto é à gay, não achas?
As salvas de prata começaram a tilintar. O ouro fez-me lembrar a viagem ao egipto da tia Lena. Meninos na primeira comunhão tão queridos quanto puros, com as meiinhas de renda puxadas até ao joelho. Casais apaixonados a escolherem alianças. Bebés a levarem água benta. O velho que vai comprar a jóia mais cara à secretária. Todo um mundo sem Vânias.
Meti-me na conversa e disse que era aquela a medalha que queria levar.

quarta-feira, novembro 04, 2009

rua

A florista invadiu-nos a entrada do solar. Abro a porta e tropeço nos molhos de crisântemos, dou de caras com os arranjos para os mortos. Cheira tudo a água e a verdes, faltam as velas e o silêncio duro dos sítios sérios para se poder velar ali alguém. Nunca tinha visto a menina Iolanda tão atarantada como nesta altura do ano. Ontem disse-me que no sábado ficou até às 4 da manhã a fazer arranjos.
- Oh menina, e nem imagina o que foi para aqui. Os seus vizinhos fizeram uma festa até às tantas. Uns drogados, pertencem aquele grupo, os rastas. Era o dia das bruxas ou lá o que era.
- Oh dona Iolanda, deixe-se lá disso. Dê-me por favor um vasinho de incenso e outro de avenca.
(é princípio do mês e eu gosto de comprar plantas, dar-lhes nomes e abençoar os dias que chegarão)

Regressando aos mortos. Param carros e caras de todos os géneros à porta. É a única florista do centro, detém o monopólio do cemitério local. A senhora da loja dos bordados espreita para ver se conhece alguém. Tem pouco cabelo que arranja com minúcia. O marido tem cara de balão vazio como se um dia tivesse deixado a humanidade dentro de um edredon e nunca mais se tivesse lembrado que a tinha perdido. Vendem bordados, colchas, edredons, essas coisas, mas nunca os vi a venderem nada. A dona Iolanda, mulher altiva e determinada, nunca falou com o casal vago e vazio de poucos cabelos e muitos bordados. A Dona Iolanda está sempre na tagarelice com a menina da loja de antiguidades que fica plantada à porta a dizer que tem frio o dia todo e esfrega as mãos com método e perícia.

claude lévi-strauss (1908-2009)


Le monde a commencé sans l'homme, et il s'achèvera sans lui.

sexta-feira, outubro 30, 2009

pedrinhas e petróleo

Está toda gente muito preocupada com o calor. Que é verão no outono. Que andamos pra´qui de havaina enquanto a bota de inverno espera mofenta no armário. Que o mundo está doido.

Ontem cheguei a casa a suar. Eram sete e meia e vi o Adriano outra vez. Estava na esplanada com o Toni, companheiro de escadotes e bagaços. O Toni usa uma placa muito mal feita que me deixa sempre angustiada. Os dentes são demasiado brancos, assim para fora, tipo desenho animado. Irrita-me o Toni. Mal os vi, comecei a andar muito rápido em direcção a casa. Tropecei num meco, disfarcei. Entrei em casa, subi velozmente a escada como se aqueles dentes grandes e mal feitos tivessem pernas histéricas e pudessem correr atrás de mim.
Sentei-me no sofá de veludo, as repas colavam à testa. No Telejornal, apareceu uma jovem repórter na praia a entrevistar pessoas. Parece-me absurdo entrevistar pessoas na praia só porque está bom tempo e não é suposto estar.

Veio então uma palavra à cabeça: piche. Eu vou escrever outra vez: piche. Piche. O tempo está descontrolado, os glaciares a derreterem, pois claro. Mas brincar entre baldes e petróleo é outra fruta. Hoje em dia qualquer mamã encontra facilmente uma praia de bandeira azul, onde a filhinha asséptica brinca responsável com a Hello Kitty de lantejoulas que não se pode partir. Tem lâmpadas económicas à venda no IKEA. Um eco ponto ao virar da esquina. Um blog onde poderá criar um movimento amigos do ambiente e organizar eventos eco-qualquer-coisa. Até aposto que o email do Al Gore está disponivel algures na internet, para quem quiser tirar dúvidas. Não devemos queixar-nos do calor, queixar é feio.

(cá para mim, os dentes do Toni e o piche são muito piores que as repas coladas à testa no final de Outubro)

jorge luis borges by diana arbus

segunda-feira, outubro 19, 2009

cê dês

O Joel não sabe aparafusar coisas.
(Joel, perdoa-me, mas isto aqui agora é um espaço de ficção)
Gosto dele assim, fica irritado com os bricolages. Eu estou que nem posso com bricolages. Hoje montei a garrafeira e a coisa dos cd´s. Peguei nos meus cd´s e nos dele e juntei-os assim aleatoriamente nas prateleiras do IKEA. Não dividi por estilos de música porque não me sinto confortável com certas metodologias nem seus resultados. Gosto de encontrar o cd de kuduro que o Dalton me ofereceu onde pensava estar o concerto de Keith Jarret que roubei ao meu pai.
E de repente, com a chave inglesa na mão percebi inesperadamente a minha vida:
- um monte de prateleiras desarrumadas
- a madeira é fina e velha
- algumas têm bicho mas nunca visualizo a morfologia do insecto
- as mais velhas, aquelas que estão em cima, caem sobre as outras que estão novas e belas e fica prá´li uma mistura esquiza entre densidade matérica e fragilidade histórica à espera que aconteça um novo big bang

Penso em palavras tipo "árvore" ou "origem". Abafo qualquer vislumbre de introspecção. Releio o papelinho explicativo do IKEA que descreve todos os passos que devo seguir. Rio-me, penso que o Joel vai ter imensas garrafas para encher a garrafeira e aperto com força a chave inglesa.

quarta-feira, outubro 14, 2009

1ª tentativa

Eu não queria ter tido aquela conversa. Estava sentada a comer um covilhete na Gomes a pensar como é que se fazia aquela porra daquela massa folhada. Aparece Adriano, o empreiteiro. O Adriano tem uma mulher asseada e pontual que se chama Ingrácia e é porteira do prédio onde vive. Se a idade dos filhos não enganar, eles devem estar casados há coisa de 40 anos. A filha é juíza, e o filho vive em Palma de Maiorca com uma alemã que conheceu durante a viagem de fim de curso.
Estava sentada a pensar na massa folhada, não sei fazer massa folhada assim. Adriano:
- Menina, posso sentar-me?
E senta-se. Perco a massa folhada e a imaginação matinal. Adriano cheira a álcool barato, costumo encontrá-lo numa taberna que se chama baca belha. Estão sempre os mesmo homens lá dentro e acredito que nunca estiveram outros desde 1900, data de abertura do estabelecimento. O álcool conservou a vida e os hábitos destes homens, que parecem carregar nas dentaduras o peso das serras em redor.
Sei que Adriano não usa dentadura porque os dentes dele são enormes e separados. Imagino o cabrito de domingo enfiado naqueles espaços vazios e mortos, o bagaço do baca belha a infiltrar-se veloz pelas rachas e a arder na garganta.
Adriano sentou-se e o tributo que presto às manhãs foi por água abaixo. Depois prás, para apimentar a coisa, ainda confessou que era poligâmico.
(não usou a palavra poligâmico)
Acabei o covilhete e disse-lhe que eu não era e que não gostava que o Joel fosse. Chamou-me egoísta. Que eu não sei respeitar a natureza humana, que isto é mesmo assim. Engoli o que me disse sem mastigar, não conheço a natureza humana para poder discuti-la. Pensei na Ingrácia sentada à porta do prédio a ouvir o som do elevador, mas acho que não foi por pena.


(Na semana passada o Gil disse-me que escrevo sobre coisas reais: aquilo que acontece, as pessoas que conheço, os pequenos nadas que vivo. Vim para casa miserável, com o gin tónico a borbulhar a pergunta o que é criar na cabeça e a esbofetear a artista que já conheci)

quinta-feira, outubro 01, 2009

por quem os sinos dobram

É tempo de diospiros. Caem pesados e abertos como dantes. Desconfio em silêncio, que, com o passar dos anos e a sé ali ao lado, começam a respeitar o que lhes diz o sino. Imagino-os quietos e obedientes na hora da missa. Depois, na hora da libertação em que tudo vale, caem esparrachados no chão, que é mesmo assim. Tento explicar o verbo esparrachar a um inglês mas não consigo. Nem sei bem se existe mesmo em portugês mas isso pouco interessa, porque há formas que não tem conteúdo e são formas na mesma. A poesia fica comigo e guardo-a com medo que não dure até à secretária.

(Um dia mando esta merda toda às urtigas: telemóvel, carro, computador. Este mês o telemóvel deixou de dar por uns dias, o computador apanhou água e não tem arranjo, o carro amuou no meio da estrada e não voltou a ligar, a objectiva da máquina nova caiu veloz no xisto duriense e partiu-se. Tendo a acreditar numa nova ciência oculta que pretende acabar com os I-phones de todo o mundo e chamar-nos à ciência dos diospiros, desses que vivem suspensos e caem, felizes e conformados ao tocar do sino)

segunda-feira, setembro 14, 2009

moço de azul escuro

O homem toca à porta. Abro-lhe a porta ainda com as almôdegas a entupirem-me o esófago. O homem toca e eu corro para a entrada. Digo-lhe "hi" e responde-me em inglês, que queria um quarto para hoje à noite. O homem toca e eu reparo que ele manca, manca muito. É de meia idade e tem cabelos grizalhos que deixam cair caspa na t-shirt azul tipo polo.
(o azul é escuro e é capaz de ter uma risca branca na gola)
Recapitulemos: temos um homem de meia idade, manco, caspa nos ombros cobertos por uma t-shirt azul tipo polo, magro, estatura média. Até aqui tudo bem.
Mas depois há o que se vê, talvez o que se sente (sentir é uma palavra estranha como o homem), que não são polos sujos nem pernas insuficientes. Eu vi um homem estranho, não sei bem porquê. Os olhos: de quem queria comer o mundo às escondidas e deixar os restos para os que hão-de vir.
Mostro-lhe o quarto e as almôndegas ali ficam, nesse espaço de indecisão e de sangue, de quem não sabe se pode perder um cliente só porque lhe cheira mal o estrogido.
Mas ele não espera para ser condenado. Abriu-se como um porco na matança. Expôs em meio segundo a solidão que o governa.
- Acha que é fácil aqui arranjar mocinha?
(as almôndegas em queda livre no estômago)
- O quê?
- Mocinha?
- O quê?
- Uma moça.
Só lhe disse que não estava no sítio certo. Fechei a porta do quarto e comecei a andar muito rápido em direcção à saída.
(as almôndegas já no fim do intestino)
Ele seguiu-me até à porta assim, manco, lento, calado, sem objecções, os olhos postos o chão e a caspa dos ombros intacta.

quinta-feira, agosto 20, 2009

pastorsarinho

Caiu um vidro da casa de banho. Jaz sossegado e intacto no telhado do vizinho. O telhado do vizinho tem uma rede que fez com que a coisa não se partisse. Não entendo muito bem como é que um vidro daquela dimensão não se estilhaça em 300 bocados. Outro dia um pássaro entrou pelo buraco sem vidro, foi até à sala e cagou o gira-discos do Joel.
Tenho tendência para acreditar em lógicas deste género:
- O vidro caiu e não se partiu porque um milagre aconteceu.
É por isso que ainda não o fui buscar. Deleito-me sentada na retrete a olhar para aquela coisa perfeita e intacta na rede. Tenho até alguma esperança (pouca) que o vidro volte silenciosamente para o sítio que é dele, incentivado pelo pássaro arrependido que me cagou o gira-discos e que agora decide carregá-lo até cá cima.
Vamos passarinho, podes começar, olha que ninguém vê mesmo.

quarta-feira, agosto 19, 2009

quinta-feira, agosto 13, 2009

The death of Socrates - David

algures aí me entenderá

Estou certa de que não existe Deus no sentido em que estou certa de que nada de real se assemelha àquilo que eu concebo quando pronuncio esse nome. Mas aquilo que eu não posso conceber não é uma ilusão.

Simone Weil, in A Gravidade e a Graça

sábado, agosto 08, 2009

carta sem correios

Querida Claúdia,
Tudo bem por aqui.
Abraça-me uma leveza quase inaugural. Estranha e comovente. Desfaço-me da casa onde sempre vivi.
Não vou mais ver a palmeira desde a janela da sala. E tenho medo que o Sr. Ribeiro dos correios se esqueça de mim. O Sr. Ribeiro usa bigode e trata-me por tu. Para cartas registadas não preciso de mostrar o bilhete de identidade. Os vizinhos conhecem-me o berço, os passos, o carro, as horas. Penso que não sabem nada mais para além do berço, dos passos, do carro e das horas. Mas partilhamos todos naquele prédio uma intimidade calada de quem respeita e vive o mesmo espaço. Nunca trocámos ovos nem cebolas. Uma vez a Gabriela pediu um escadote porque tinha uma inudação em casa. Não percebo como é que se vive sem escadote.
Abro gavetas e encontro cabelos guardados em plástico e cadernos escolares indiferentes ao conhecimento. Penso no incontrolável depósito que sou eu, que somos, e tento pôr os cabelos e os cadernos no sítio certo. Peço-me desculpa e deito-os fora. Apareces sempre na gaveta das fotografias. Não há nada para além de fotografias na gaveta. As imagens sabiam ser elitistas o suficiente para se organizarem num espaço próprio e se distanciarem de cabelos e cadernos. Que respeito tínhamos por aquilo. Este era o avô que nunca conheci, aquele que não tem cor, sempre de roupas cinzentas e cara a preto e branco. A alcatifa gasta é arrancada pelos braços desiludidos da Júlia.
Sabes que mais?
Nada disto me pesa Claúdia. Bebo cerveja ao fim da tarde como antigamente. Encontro pessoas de quem gosto em todo o lado, mas sinto-me mais ou menos miserável por lhes violar as histórias de vida cá dentro. Não respeito a verdade. Imagino tudo. Olho para os cadernos e os cabelos e só penso em si, claro, na vida perfeita que me ofereceu, sim ofereceu,

(desculpa Cláudia)

como poderia pensar noutra pessoa, como sequer é que poderia pensar em mim, eu que assiti ao bicho da madeira a comer as mesinhas de cabeceira do quarto sem nunca fazer nada, sem nunca lhe ter dito, sem nunca comprar um sprayzito. Eu enchi-lhe as gavetas de cabelos e cadernos, desculpe se já não podia guardar mais nada em sua casa, eramos nós por todo lado, na comida e na desarrumação, os casacos à porta e os gritos do fundo da sala " - Agasalha-te, ouviste?"

(olá Claúdia)

Parabéns pela defesa. Contudo, não te parece termos que "defender" a tese um pouco ridículo?
Até ao lanche.

sábado, julho 25, 2009

sexta-feira, julho 24, 2009

de boca aberta com agustina - a saturação da servidão

Hoje estão em causa, não as paradas, que é tudo em que as multidões são adestradas, ou a guerra, a que se convidam; está em causa toda uma dinâmica nova para criar o habitat duma humanidade que atingiu a saturação da servidão, depois de há milénios ter dado o passo da reflexão. As pessoas interrogam-se em tudo quanto vivem. A saturação da servidão não é uma revolta; é um sentimento de desapego imenso quanto aos princípios que amaram, os deuses a que se curvaram, os homens que exaltaram. (...) Mas foi crescendo a saturação da servidão, porque a alma humana cresceu também, tornou-se capaz de ser amada espontaneamente; tudo o que servimos era o intermediário do nosso amor pelo que em absoluto nós somos. Serviram-se valores porque neles se representava a aparência duma qualidade, como a beleza, o saber, a força; esses valores estão agora saturados, demolidos pela revelação da verdade de que tudo é concedido ao corpo moral da humanidade e não ao seu executor.
Um grande terror sucede à saturação da servidão. Receamos essa motivação nova que é a nossa vontade, a nossa fé sem justificação a não ser estarmos presentes num imenso espaço que não é povoado pela mitologia de coisa alguma. Somos novos na nossa velha aspiração: a liberdade é doce para os que a esperam; quando ela for um facto para toda a gente, damos-lhe outro nome.

Agustina Bessa-Luís, in Dicionário Imperfeito

segunda-feira, julho 20, 2009

porco II

O holandês deixou os dois tupperwares no carro. Fiquei podre, pior que o porco. O porco ficou, nada mais nada menos, que 3 dias dentro da carrinha a apodrecer. Não bastava já ter sido morto e cozinhado. Cago-me de medo de hoje vir a sonhar com o animal a quem aquele cachaço pertenceria, inventar-lhe nome e família, data de nascimento, se gostava mais de bolotas ou ração.
Não admito este esquecimento por várias razões. Pelo desperdício como é óbvio. Pelo cheiro nauseabundo que ficou no carro do Joel e por termos que ter feito uma viagem a 140km/h sempre com as janelas abertas já depois de termos atirado os restos mortais ao lixo. Gosto tanto de silêncio.
A última razão, a mais forte, é também a mais absurda de todas. É que eu tenho pena como aquele porco acabou. Sozinho, sempre sozinho, depois de nos ter oferecido um belo jantar de quinta feira com o seu próprio corpo, acaba dentro de um tupperware do IKEA, (daqueles baratos que só se vendem em packs), debaixo do assento de uma carrinha que não é usada ao fim-de-semana, deitando odores do mais criativo que há, à espera que alguém repare nele.

sexta-feira, julho 17, 2009

porquinhos

O porco estava bom. Foi a primeira vez que comi tal bicho na casa nova. A casa é tão arejada que só pede vegetais e coisas assim frescas. Não aceita bem cadáveres, apesar de eu apreciar tais bicharocos. O holândes falou-nos dos seus hábitos alimentares. Vive sozinho e compra pão que vai congelando e descongelando. Depois do jantar, pus os restos dentro de duas caixinhas de plástico e dei-lhe.

Lembro-me depois do Alfredo sentado nas escadas, de mochila às costas. Teria mais de 40, cara carregada de sono e solidão.
- Quero mudar de quarto.
E estende-me as chaves, não olha para mim, como se quisesse cortar com o passado que as ditas cujas representavam. Aceitei-as, absolutamente conivente com o acto, como uma recém divorciada a quem o marido lhe entrega as chaves da casa. Não perguntei porquê, porque porquê parece-me uma pergunta demasiado brutal para quem sofria como Alfredo.
- Posso ajudar-te em mais alguma coisa, Alfredo?
- O americano batia palmas toda a noite. Havia um espanhol que ressonava alto, muito alto, então o americano resolveu bater palmas, como se fosse ele o dono do mundo, como se não houvesse mais gente no quarto.
Nesse dia, Alfredo foi passear com Andreja, eslovaca simpática que viajava sozinha e sabia falar português. Penso que depois de uma noite sem dormir, o nosso amigo Alfredo sentia-se bem apenas com alguém que falasse a sua língua.
Na manhã seguinte encontrei-o na sala sozinho, bem antes do tempo da água fervida e do café na mesa.
- Dormiste bem?
- Hoje sim. As pessoas não sabem uma coisa: não sabem muitas vezes que os problemas vêm delas e não dos outros. A culpa é quase sempre nossa. Sim, culpamos os outros dos nossos males e insónias, mas o problema está em nós.

O bruxismo voltou. Passo a noite a roer os meus próprios dentes, já gastos o suficiente. O melhor é não voltar a comer porco, a culpa pode ser mesmo do cadáver. Minha não é de certeza. O que achas Alfredo?

terça-feira, julho 07, 2009

segunda-feira, junho 29, 2009

robert larga o ice tea e dedica-se ao porto

Estou aqui, aqui mesmo. Por momentos percebo onde estou, não sei quanto tempo vai durar. Estou sentada nesta carpete preta. Ou no tapete negro. Não, nem uma coisa nem outra - estou sentada no tapete preto que é como me ensinaram a falar.
Já não me lembro do dia.
Estou sentadinha assim, quase a doer-me o rabo, apesar do tapete ter uma espécie de pêlo.
Daqui vejo bem os pés do Robert, que está do outro lado do sofá. Os pés do Robert são largos como barbatanas usadas que foram alargando com o tempo. Os dedos são grandes, consistentes e secos, parecem pequenos troncos de lenha preparados para arder na lareira do vizinho. Digo vizinho porque não temos lareira aqui e não calha bem a metáfora.
O Robert só bebe vinho do porto desde que chegou ao Porto e eu acho-lhe piada por isso. Uma coisa tão simples de se fazer. Beber a coisa típica da cidade por onde se anda. Tirou uma foto do cartaz publicitário da Ramos Pinto e fez uma montagem fantástica no photoshop: em vez das cabeças dos dois personagens vintage, aparecem duas fotografias do próprio Robert. O Robert a olhar para ele mesmo, e o belo anjo a segurar-lhe um copo cheio de idiotice e desilusão.
(desilusão porque o Robert disse-me há pouco não acreditar no amor, e idiotice porque ele é um nadinha de nada idiota. Daqui de onde estou vejo-lhe o modelo das sandálias que usa pela forma do escaldão que tem nos pés de urso, mas isso não o faz muito mais idiota do pouco que já é)
O Robert, para além de beber coisas típicas da cidade onde se encontra (neste momento vive na Rússia e bebe vodka), trabalha 6 semanas sem parar e depois galanteia-se outras 6 semanas a viajar. Ora trabalha, ora viaja. Gosto dele por isso e por beber vinho do porto com gosto mas sem distinção.

sexta-feira, junho 26, 2009

carlos drummond de andrade


(...) O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida. Não apenas o sol, mas tudo que ele ilumina. Tudo que se faz sem você, porque com você não é possível contar. Você esperando que os outros vivam, para depois comentá-los com a maior cara-de-pau ("com isenção de largo espectro", como diria a bula, se seus escritos fossem produtos medicinais). Selecionando os retalhos de vida dos outros, para objeto de sua divagação descompromissada. Sereno. Superior. Divino. Sim, como se fosse deus, rei proprietário do universo, que escolhe para o seu jantar de notícias um terremoto, uma revolução, um adultério grego — às vezes nem isso, porque no painel imenso você escolhe só um besouro em campanha para verrumar a madeira. Sim, senhor, que importância a sua: sentado aí, camisa aberta, sandálias, ar condicionado, cafezinho, dando sua opinião sobre a angústia, a revolta, o ridículo, a maluquice dos homens. Esquecido de que é um deles. (...)

quarta-feira, junho 17, 2009

fim da tarde solto

É o medo que o tempo traz. O tempo sem palavra e sem desenho. Há um tempo de silêncio, sim - sem palavras, sem desenho, só porque deve ser. Há verbos mais inquestionáveis que outros.
Só é preciso cuidado para não ultrapassar aquilo que nos é permitido. Há uma restrição absoluta e invisível desse tempo que apodrece e deixa o medo, velho resistente moribundo.
Como se tudo aquilo que está numa sala pudesse deixar de existir quando se desliga a tomada. Não vale a pena ficarmos com tudo para nós. A luz ficou apagada tanto tempo, é agora difícil ver os armários outra vez.
Mas entretanto confesso, amo-vos, palavras que não escrevi. Prometo-vos ser fiel. Com uma condição: saiam cá para fora.
Enquanto não existirem ninguém vos pode dizer que não valem a pena.

sábado, junho 13, 2009

tu, m(ed)usa

Penso que um autor deve intervir o menos possível na elaboração da sua obra. Deve procurar ser um amanuense do Espírito ou da Musa (ambas as palavras são sinónimas), e não das suas opiniões, que são o que de mais superficial nele existe. Assim o entendeu Rudyard Kipling, o mais ilustre dos escritores comprometidos. A um escritor, disse-nos, é-lhe dado inventar uma fábula, não a moralidade dessa fábula.

Jorge Luís Borges, in Nova Antologia Pessoal

segunda-feira, junho 08, 2009

domingo, maio 31, 2009

segunda-feira, maio 18, 2009

da rua e dos pés

Alice sentiu frio nos pés. Não se devem usar sandálias com este tempo, mas era tão de manhã. Foi então que viu duas pombas.
Alice costuma sair tarde de casa. Não, costuma sair mais tarde do que devia. No fundo, e de forma mais que patética, desafia o tempo. Como se aqueles 5 minutos que lhe restam para fazer a marginal toda, pudessem inchar como os seus pés num dia de verão e as sandálias muito apertadas.
Depois do episódio da ovelha suicida e do cavalo abandonado, foi a vez das pombas.
Alice entra em casa. Naquele dia, antes do outro em que tinha saído com frio nos pés. À porta do prédio uma pomba estranha. Está encostada, aninhada, naquele canto onde vai aquele homem parar às vezes para dormir um bocado e acabar o vinho de pacote.
Não fez nada, nada havia a fazer, ou talvez alguma coisa, sei lá. Pensou que não iria lutar contra o destino da pomba e que pensos adesivos em patas de pombas vadias era coisa de filme chato. Alice, que gosta de desafiar o tempo nos dias em que trabalha e quando apanha aviões, não é capaz de desafiar o fado da pomba moribunda. Nunca ninguém lhe tinha chamado hipócrita.
Sentiu frio nos pés. Quando fazia marcha atrás, olha (não sabe porquê) por baixo da carrinha branca que está estacionada mesmo em frente ao prédio.
Alice vê a pomba, morta.
(não interessa se era a sua ou não)
Vê duas pombas mortas.
Alice é novamente patética e pensa que a segunda pomba morta tinha vindo para ajudar a primeira, e não tendo conseguido completar a sua missão, morreu de tristeza.

sexta-feira, maio 08, 2009

manguemo-nos enquanto levantas os olhos

Apareceu uma nova versão do Roberto de limão. Desta vez não bebe latas de ice-tea assim seguidinhas. É mais inteligente: comprou um pacote daqueles grandes do mini-preço. De manga. Já foi ao supermercado 3 vezes. Abro-lhe a porta com um sorriso digno de quem não se importava (ainda que me importe) de partilhar o pacote ao fim da tarde no jardim. Ele baixa a cabeça, eu baixo com ele de forma a vermos os dois a mesma coisa. Não lhe sei o nome, devia saber. Não lhe posso tratar pelo nome, devia tratar. Mas, digamos que, para este nível precário de conhecimento, saber o nome de alguém é retirar-lhe todas as características que se estão a formar. Não me posso dar ao luxo de aceitar tareias violentas naquilo que ainda me resta de imaginação. De tanto a salgar, acabou por ficar seca - a pobre.

Il n'y a pas de problème parce qu'il n'y a pas de solution

terça-feira, abril 28, 2009

il postino




- ...Os etcéteras! Pensa que o mundo inteiro é a metáfora de qualquer coisa?

quinta-feira, abril 23, 2009

cama de casal

Vou contar aqui uma coisa. Pequena, como de costume. A minha irmã mais nova, que terá os seus 15 anos, disse hoje ao jantar que tinha 3 grandes sonhos:

- ir a Nova Iorque
- assistir a um jogo com o Roger Federer no Wimbledon
- ter uma cama de casal e poder dormir à larga

Vim para casa. De noite, os espaços tornam-se imensos, desfigurados. Deitei-me na cama vazia - de casal por sinal - e estive quase para lhe mandar um toque.

(não sou divorciada)

segunda-feira, abril 20, 2009

so high thek




Paul Thek's piece pays homage to cruel losses sustained on a battlefield of the artist's imagining.

esto mago

De repente, a cabeça seca e o estômago tem um buraco. A médica diz que pode ser úlcera, mas que este é o primeiro episódio de dor e por isso não vou ter que fazer endoscopia. Há quem diga que as endoscopias não são exames fáceis, que nos metem um tubo por ali abaixo. Não tenho medo dos tubos, mas assustam-me as noites em que acordo a ganir de dor e só uma bolacha me acalma. Acordo, sinto o estômago (até agora só sabia onde o estômago era porque era aluna de 4 a ciências da natureza), sinto a dor, não não, aquela dor é maior que eu, e eu é que a invado, eu é que não pertenço ali. Tenho saudades daquilo que sou. Fecho os olhos à espera de um sonho cheio de lulas e alecrim. As lulas aparecem e o alecrim deixa-me o aroma na mão. Entretanto aí vem ela outra vez, acordar, ganir, abrir a luz e a boca, bota a bolacha abaixo antes que venha o tubo e adormeço novamente à espera de galinhas ao ar livre.

sexta-feira, abril 10, 2009

brasas

Hoje de manhã foi assim: eu estava numa fila do supermercado. O que eu queria era sair da cama e que aquela fila acabasse rapidamente, mas isso é outra história. Antes de ir pagar, costumo olhar sempre para a menina da caixa para perceber como é que ela passa os produtos naquela coisa que lê os códigos de barra. Dependendo do movimento de mãos da menina e não do tamanho da fila, escolho a caixa. Bem, este supermercado só tinha uma fila e uma menina. Eu estava a escolher uma pizza congelada (detesto pizzas congeladas) enquanto esperava pela minha vez de pagar. Isto é giro, poder estar em duas partes ao mesmo tempo. Abri várias caixas de pizza para ver o aspecto das pizzas, li-lhes os ingredientes, ofendi os produtores. Depois lá apareceu uma que me convenceu: era de queijo e lulas. Queijo e lulas, meu deus, o que é que se passará na minha reserva de desejos. Eis senão quando abro o pacote e o que encontro é apenas uma lula. Uma lula nem grande nem pequena, corpo médio e congelado. Já as patinhas, essas, que eram muitas e fininhas pareciam mais moles, como se fossem imunes à temperatura negativa da arca, quase como as mãos elegantes do meu vizinho que só toca piano ao fim de semana.
(o vizinho gosta da música da pantera cor de rosa, mas toca-a sem mistério)

últimas semanas

Às tantas, passa-se horas a dormir e não sabemos por onde andamos. Isto tem-me acontecido, deito-me cedo e nunca mais acordo. Sonho consigo avó, sempre. Outro dia estava a tomar banho e ouço alguém a entrar em casa. Espreito pela porta da casa de banho e vejo-a no corredor, com aqueles vestidos que só usava no Verão e com uns óculos dos anos 80 que tinham a massa castanha e grossa. Fiquei preocupada se estaria a molhar o chão todo, a avó não gostava, e eu era descuidada. Aquilo também sem cortina era difícil. Outro dia ria-se, nós a falarmos não sei de quê e a avó só se ria. Nem uma palavrinha, eram sorrisos calmos e inesquecíveis.
É assim que recheio a sua enorme ausência, em acontecimentos noctívagos e isolados que nunca sei quando vão aparecer de novo. Talvez por isso agora durma tanto, para passar horas consigo, assim, sem nada para fazer, só aquela coisa do almoço e de estarmos no sofá. O último sonho deixou-me preocupada: eu sabia que a avó estava morta mas a avó morreu durante o sonho, como se a segunda morte confirmasse a primeira. Fiquei com muito medo que o meu inconsciente a tivesse matado e nunca mais a pudesse ver de vestido no corredor. Desde então ainda não sonhei outra vez consigo e já passaram 4 dias. Fui ao Ikea e comprei uma cortina para a banheira.

quinta-feira, abril 02, 2009

filhos

Sócrates: Você sabe, Fedro, esta é a singularidade do escrever, que o torna verdadeiramente análogo ao pintar. As obras de um pintor mostram-se a nós como se estivessem vivas; mas, se as questionamos, elas mantêm o mais altivo silêncio. O mesmo se dá com as palavras escritas: parecem falar connosco como se fossem inteligentes, mas, se lhes perguntamos qualquer coisa com respeito ao que dizem, por desejarmos ser instruídos, elas continuam para sempre a nos dizer exactamente a mesma coisa. E, uma vez que algo foi escrito, a composição, seja qual for, espalha-se por toda a parte, caindo em mãos não só dos que a compreendem mas também dos que não têm relação alguma com ela; não sabe como se dirigir às pessoas certas e não se dirigir às erradas. E, quando é maltratada ou injustamente ultrajada, precisa sempre que o seu pai lhe venha em socorro, sendo incapaz de se defender ou de cuidar de si própria.

Platão, in Fedro

quarta-feira, março 25, 2009

roberto de limão

O Roberto, só naquele bocadinho estive lá, bebeu 4 ice-teas. Vi-o com estes olhos que a terra há-de comer, a abrir 4 latinhas daquelas. Era apenas um fim da tarde de terça-feira e não havia muito para fazer. Talvez por isso ele fosse achar que se intoxicar de açucar e teína seria a melhor opção. O Roberto abria as latas maquinalmente, indiferente ao som do metal quando se puxa aquela coisa e abre-se a lata. Pode-se dizer que esse som é excitante, sugestivo, inaugural. Faz-me lembrar a campainha de Pavlov. Acho que o que eu queria mesmo é que o nosso Roberto fosse que nem os cãezinhos, que ladrasse e se babasse ao ouvir o estalo metálico que lhe anunciava gratuitamente a satisfação de um desejo. Mas não. Talvez ele não sentisse desejo. O nosso amigo olhava em frente e prás, abria a lata, depois punha a cabeça assim ó pra trás, um golo desmedido, e voltava a pousar os olhos num livro que fingia ler.

(à noite, quando fui revistar os quartos e vi o Roberto a dormir, apeteceu-me abraçá-lo muito e dizer-lhe que a solidão não se cura com líquidos)

terça-feira, março 24, 2009

quarta-feira, março 18, 2009

gente com o vente

O homem da garagem não tinha qualquer sotaque. Sozinho na garagem grande, vestia uma camisa branca e mancava. Mancava sem se atrapalhar, não queria andar mais rápido do que podia. Tinha uma cara feita em gesso de onde não se desvendava facilmente a idade. As mãos eras grandes, como se dentro delas e dos ossos que nelas estão dentro, pudesse carregar mais segredos que nós.
- Um homem de camisa branca numa garagem - pensei.
Não foi preciso tirar bilhete nem registo.
- Menina, vá-se embora e não se preocupe.
Todos estes bilhetes que somos obrigados a tirar nos parques são demasiados pesados por representarem uma equação mal resolvida para quem gosta de viver: tempo = dinheiro.
O homem da garagem não tinha trocos. Vestia uma camisa branca e tinha o cantinho dele montado, na imensidão do espaço absurdo que é uma garagem.
Uma mesa vazia. Encostados à parede, uma lancheira quase fechada e um microondas com a hora errada.

segunda-feira, março 09, 2009

lanche

Ela falava, falava desmesurada, indefinidamente. Ela falava sem receptor. Há muito disto no mundo - pensei. Não percebo se é uma questão de arrumação mental, de desprezo pelas palavras, necessidade de integração, vontade de sair da concha. À noite, às vezes falo com o espelho.

(Olho em volta e bato com a cabeça na concha que está cada vez mais dura. É difícil abri-la, e partir não se aconselha. Às vezes revejo-me naquelas amêijoas que ficam no prato por estarem muito fechadas)

- Cuidado que essas não se podem comer!

Voltando à mulher. No início, até a ouvi. Havia um prato de salpicão na mesa. Depois comecei a emborcar o enchido de forma desumana. E à medida que a senhora se ia entusiasmando, eu ouvia-a cada vez menos, até as palavras se tornarem sons de dedos a baterem na concha. Truz truz. Não entram. Já estava lá dentro, num silêncio absoluto, e o sal do salpicão a roubar o sentido de todos aqueles ecos verbais, conservando-me viva e fresca na concha esquecida.

terça-feira, março 03, 2009

zézix

Caro Zézito, deixe-me que lhe diga: a palavra "simplex" é de mau gosto. Remete para marca de tachos ou tupperwares. Pior, ainda me faz lembrar aquele anúncio da clix que quer que compremos algo que é "à borlix".
Fonix Zé, respeita-nos. Promove o português correcto e poupa o povo a conhecer os teus pêlos da perna. Desde que te vi todo suado na televisão, a fazer uma maratona de domingo, nunca mais acreditei em ti.

ps: é verdade, outro dia ouvi um tio teu no telejornal a chamar-te de Zézito, e achei que todos te podíamos tratar assim.

sábado, fevereiro 28, 2009

segunda-feira, fevereiro 23, 2009

antecipação da primavera

É nestes dias de sol, que ao coçar o cérebro de certas irritações mentais, me entrego à luz inaugural das manhãs e amo cada mochileiro ignorante que por aqui passa.

notas:
(eu também sou ignorante)
(amo igualmente os mochileiros que não são ignorantes)

quinta-feira, fevereiro 19, 2009

verde

Gosto de alcatifa gasta. Está gasta por toda a casa. Conta-me o tempo e o peso dos pés. E, de tão gasta, começa a anunciar a camada que está por baixo. Por baixo está uma espécie de rede pixelizada bege - há manchas que me explicam os percursos que gosto de fazer. Entro sempre pelo mesmo sítio, estou a vê-lo da cama, está gasto da minha monotonia. Podia pelo menos, de vez em quando, entrar mais encostada para o lado do puxador. Que ficasse aí o testemunho de alguma coisa que só faço de vez em quando. Mas não, a matéria não mente, o que está gasto gasto está, e nós para aqui a olhar a ver se ela se põe nova outra vez e me mostra o tamanho antigo dos meus pés.
Hoje prometi a mim mesma não escrever nada que fosse nostálgico. Não sei se as alcatifas são nostálgicas ou não. Talvez por nunca poderem ser limpas dos ácaros devidamente, representem o processo da infinita acumulação que nos gere. Não quero acabar o texto aqui. Falta o remate final, quando se dá aquele nó que une as coisas escritas acima. No quarto da Lé, o chão está cheia de linhas soltas e bocados de tecido que se agarraram à alcatifa já há muito anos, e que o aspirador não as consegue tirar.

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

natas

A Berta diz que há gente que defuma as casas. Eu não conhecia esta prática. A única coisa que me lembrei quando ela disse aquilo foi de salmão e presunto.
Defumar é, basicamente, limpar a casa dos espíritos malignos do inquilino anterior.
- Sim, porque há pessoas que podem tolher a nossa vida - continua.
Então é assim: com medo que nos tolham a vida, mais vale que defumemos a casa.
E como é que se defuma?
Compram-se umas coisas naquelas lojas e depois dizem-se umas palavras para os cantos da casa.
Não é qualquer um que pode defumar, tem que ser daqueles repórteres especialistas no além. Cartas e essas coisas. Outro dia conheci uma. Disse que sabia tombar pessoas, tombava pessoas do mal. Pensei quem eram as pessoas do mal. Como se pertencessemos a algum repartimento moral. Olha que aquele, é uma pessoa de bem. Mas enfim, se formos do mal, há que ter cuidado em sentarmo-nos na cadeirinha, senão vem a Rosa e pumba - já estamos tombados.
Não sei se alguém já me quis tombar ou tolher.
Naquela noite, sem me conhecer, a Rosa disse que via tristeza nos meus olhos e eu comecei alegremente a comer o prato de bacalhau com natas.

(a Berta deve ter falado da minha avó ao subir a calçada)

quarta-feira, fevereiro 11, 2009

tisanas

"Às vezes penso: os nossos sentimentos são como uma espécie de esparguete em aço, em que cada segmento está totalmente imiscuído no todo mas ao mesmo tempo é distintamente apercebível. Outras vezes penso: não, os nossos sentimentos são como uma floresta de esparguete de aço em que cada segmento emerge só parcialmente distinto. Na ponta de cada uma dessas varas vibra uma formação algo rendilhada, consequência dos constantes tremores de cada segmento, e assim, quando alguém está sob o império de funda emoção, tudo nele treme e na floresta tudo vibra e essas extremidades rendilhadas formam rapidíssimos desenhos, imiscuindo-se uns nos outros, e o total é uma combinação de vibrações que se sobrepõem e explicam a confusão que se encontra no indivíduo sob o império da emoção."

Ana Hatherly

sexta-feira, fevereiro 06, 2009

segunda-feira, fevereiro 02, 2009

avó e computador

Não sei se deva procurar um sentido para tudo o que acontece. Isso contraria a natureza caótica do mundo e reduz-nos a figurantes.
Durantes estes anos todos (poucos) forcei-me a pensar que as coisas aconteciam porque tinham que acontecer. Espera aí, talvez o facto de aceitar certas coisas como são, e exclusivamente as coisas que acredito não poder mudar, seja um acto profundamente estóico.
Porra, ainda que tenha um trabalho importantíssimo para entregar amanhã, prefiro vir para aqui cuspir fluídos psíquicos.
Hoje tudo me parece banal mas profundamente único.
O computador que comprei há um ano e por quem tinha enorme carinho, estragou-se ontem a meio do tal trabalho importante. Um especialista de computadores, amigo de longa data, disse-me para não ter muitas esperanças em recuperar a informação. Está bem, eu não tenho. Pus-me agora a pensar o que ficou ali e não senti grande coisa. Quer dizer, senti, mas foi insignificante. Perdi registos, muitos registos que não sei como recuperar. O passado electrónico não pertence a ninguém.
A minha querida avó materna morreu há uma semana e eu passo os dias a tentar recuperá-la dentro de mim. Tenho medo da memória. Ontem o computador perdeu a sua sem mais nem menos. Tenho medo da memória. Não quero que ela venha para aqui com as suas selecções esquisitas de momentos. Avó, eu não quero esquecer nada que tenha a ver consigo. Quero registar todos os cheiros e todos os seus gestos. Quanto tempo demorava o seu silêncio. O facto de amá-la assim faz com que o meu disco rígido seja mais resistente que os da apple.

quinta-feira, janeiro 29, 2009

Rilke

Tudo quanto é velocidade não será mais do que passado, porque só aquilo que demora nos inicia.

quinta-feira, janeiro 15, 2009

terça-feira, janeiro 13, 2009

leitão com asti gancia

A Maria Leitão aparece na cozinha enquanto desfio bacalhau. Não exige que lhe olhe nos olhos para dizer que está feliz porque o pai morreu.
- Não sei onde. Lá para o Brasil. Só soube uns tempos depois.
- Feliz, Maria? Coitado do seu pai.
A Maria voltou a abrir a boca para lançar um sorriso quase bárbaro. O pai fez-lhe muito mal. Senti-me estranhamente bem por ter encontrado uma espinha.
A Maria comemorou o acontecimento com champanhe. Disse:
- Menina, tinha há anos uma garrafa de champanhe guardada para quando morresse a minha sogra, mas tive de a abrir. Agora só tenho que comprar outra e esperar pela morte da minha sogra. A minha sogra é muito má. É mesmo muito má.
Nunca me tinha passado tal coisa pela cabeça. Já há muitos anos que deixei de entender a bondade ou a maldade. Enquanto arrancava a última pele cinzenta da posta, comecei a sentir as bolhinhas do champanhe na barriga.
Pensei em desenhos animados.
Os maus, os bons, os maus que morrem vencidos pelos bons.
Mas a Maria não faz parte deste trama. É pura espectadora, calculista e previdente, não vá a sogra morrer ao domingo e o supermercado estar fechado.

quinta-feira, janeiro 08, 2009

terça-feira, janeiro 06, 2009

novo (2) - bruxismo

O dentista já me tinha dito que eu era bruxómona. Não sei como é que se escreve, procurei no google e só encontrei sites brasileiros. Se bem que vai ser tudo igual daqui em diante. Sim, sofro de bruxismo. Não é porcalhice.
O bruxismo consiste em passar a noite a raspar com os dentes uns nos outros, como se estivéssemos muito zangados. Do género cão antes de morder. RRRRRRRRRR. Ranger.
Quando ele me disse que sofria de bruxismo eu não liguei, mas ultimamente acordo exausta da boca. De daqui em diante, se alguém me disser que ando com má cara eu vou confessar: "ó pá, é porque ando cansada da boca". Imaginem-se a mastigar aqueles restinhos de nozes e pinhões a noite toda. A tarefa nunca está completa - mal acabam de aniquilar aquele resto de amêndoa dos formigos do Albano, aparece a avelã do chocolate Nestlé da Tia Cláudia.
Pensei que talvez os sonhos e o meu estado psíquico pudessem influenciar na intensidade do bruxismo. Mas não me parece. Sonhei a noite toda com uma comunidade de gatos. Acabou com a gata mais bonita a ter filhos. Isto é de uma simplicidade quase absurda. Se ao menos sonhasse com cavalos brancos, portas e precípios. Não, sonho com gatas parideiras e com meia dúzia de pessoas que amo e me fazem feliz.

novo (1) - pick up

O ano começou mal. Desde dia 1, já comi com duas multas no carro e um pequeno acidente. Não foi acidente. Foi estupidez minha. Também não foi com o meu carro, foi com o carro de outra pessoa. Se fosse com o meu já não valia a pena contar.
Descobri que o vizinho que eu acreditava andar-se a fazer a mim é gay.
A Gabriela veio pedir um escadote porque tinha a casa dela inundada e nunca mais o devolveu. Para além de livros e cd´s, nunca se deve emprestar escadotes.
No dia 2 pus-me a pensar se não deveria fazer daquelas listinhas inúteis com aquilo que quero mudar neste ano, deixar de fumar, fazer dieta, não dizer mal das pessoas no blog. A treta do costume. Detesto listas, promessas, juras. Juro-te que. Juro-te pela minha vida. A única vez que tive que jurar tive que mentir, naquela espelunca de tribunal. Mentir em sítios feios torna a mentira demasiado verdadeira.
Não quero ouvir ninguém a prometer nada, basta que falem, a promessa é por natureza uma redundância. Ou deveria ser.