sexta-feira, novembro 07, 2008

OgonçalO

O Gonçalo corre pelos corredores da Ordem da Trindade sozinho, como se quisesse provocar o silêncio e a doença. Ninguém o proíbe. Vestido de cores outonais, traz ao peito um papel com o seu nome que me faz lembrar o cheiro de um lápis aguçado. O Gonçalo tem um redemoinho na poupa do cabelo que lhe poupa algumas questões existenciais acerca do seu futuro físico - toda a gente sabe que este tipo de redemoinhos capilares são resistentes ao tempo, por isso, ele próprio se vai aperceber que afinal há sempre alguma coerência naquilo que o define.
Mas o miúdo não é assim tão heróico para estar sozinho, de uma das celas hospitalares sai a avó com o cabelo que lhe resta pintado de um vermelho quase eléctrico. A avó não traz nome ao peito nem tem cintura. É recta da cabeça vermelha aos sapatos ortopédicos, assim, meia enchouriçada.
A avó olha para nós e imagina um sorriso conveniente que nunca lhe chega a sair.
Chama:
- Gonçalo.
E o Gonçalo continua a fugir, desta vez vai pelas escadas, já está quase no 2º andar.
E eu, de cá de cima e através do vão, vejo a poupa a fugir também, movimentando-se quase livremente dentro daquilo que o próprio cabelo pensou ser o seu momento áureo de indepêndencia face aos genes. Pergunto:
- Gonçalo, tiveste um irmão foi?
- Não.
( ele já quase no primeiro andar)
- Então, é uma maninha?
- Não. Foi a minha mãe que veio aqui encolher as maminhas.

domingo, novembro 02, 2008