segunda-feira, junho 30, 2008

curas

A célebre forma de medicina moral (a de Aríston de Chios), «a virtude é a saúde da alma», deveria ser pelo menos assim transformada para se tornar utilizável: «A tua virtude é a saúde da tua alma». Porque em nós não existe qualquer saúde, e todas as experiências que se fizeram para dar este nome a qualquer coisa malograram-se miseravelmente. Importa que se conheça o seu objectivo, o seu horizonte, as suas forças, os seus impulsos, os seus erros e sobretudo o ideal e os fantasmas da sua alma para determinar o que significa a saúde, mesmo para o seu corpo. Existem, portanto, inúmeras saúdes do corpo; e quanto mais se permitir ao indivíduo, a quem não podemos comparar-nos, que levante a cabeça, mais se desaprenderá o dogma da «igualdade dos homens», mais necessário será que os nossos médicos percam a noção de uma saúde normal, de uma dieta normal, de um curso normal da doença. Será só então que se poderá talvez reflectir na saúde e na doença da alma e colocar a virtude particular de cada um nesta saúde, que corre muito o risco de ser num o contrário do que sucede com outro. Restará a grande questão de saber se podemos dispensar a doença, mesmo para desenvolver a nossa virtude, se, nomeadamente, a nossa sede de conhecer, e de nos conhecermos a nós próprios, não tem necessidade da nossa alma doente tanto como da nossa alma saudável, em resumo, se querer exclusivamente a nossa saúde não será um preconceito, uma cobardia e talvez um resto de barbárie mais subtil e do espírito mais retrógado.

Friedrich Nietzsche, in 'A Gaia Ciência'

sábado, junho 28, 2008

tel à vivo

Outro dia sonhei a noite toda com Israel. Senti-lhe os cheiros, procurei as ruas, subi a apartamentos de amigos, assaltei as cores e os tamanhos das janelas. Falei com gente que não conhecia e tive pensamentos sobre eles. Falaram-me de política, deram-me opiniões.
Nunca fui a Israel. Acordei a pensar o quão viajados não seremos, se ao menos nos lembrássemos de tudo que já sonhámos, que pessoas tão cultas e interessantes seríamos.

quinta-feira, junho 19, 2008

cheia de graça

Descobri o Sr. Júlio do universo feminino.
Tem olhos de sapo como ele que parecem duas ameixas saltitantes com vontade de fugir do resto da cara como se não lhe pertencessem.
Há dias que são só de dúvidas disse o Sr.Júlio no último Inverno. E ela agora entre pataniscas e lava loiça pergunta-me com a mesma leveza com que fritou o bacalhau: " E a morte como será?"
Sabes Maria, é que os momentos mais importantes da nossa vida que é quando nascemos e quando morremos, nós nunca havemos de nos lembrar deles, nunca - disse. Eu acredito tanto em Deus, continuou, já vi o filme de Jesus mas sei lá bem o que é verdade no meio de tudo aquilo.
Eu olho-a por uns segundos e digo que por acaso também acredito em Deus e ela pede-me que eu coma mais salada.

quarta-feira, junho 18, 2008

veículo movido a energia desconhecida

Pronto, fartei-me da selecção e do Cristiano Ronaldo, sim, já estava com medo de me fartar e agora fartei-me realmente, estou completamente farta - já não os posso comer mais.
Por exemplo, acho uma chatice ligar a televisão e ver um bando de lutadores a empurrar um autocarro com a equipe lá dentro. Não sei se já viram a versão original (http://www.youtube.com/watch?v=DTx_J9qDF5s), mas ele há gente a cair na neve e a levantar-se assim muito rapidamente com a força de um verdadeiro campeão. Há seres estranhos a empurrar o autocarro. Velhos, novos, giros, engraçados, indiferentes, mas nenhum com cara de português. E lá dentro os jogadores engravatados de semblantes muito sérios - verdadeiros responsáveis pelo estado do país. Mas que é isto? E que coisa é aquela do Simão estar a ouvir Ipod enquanto que alguns burros de carga berram lá fora? Sempre fui super adepta da selecção e até andava a usar um pin com o galo de barcelos que saiu à Júlia na tv mais.
Mas não consigo conceber a ideia de que uma equipe de futebol nos possa fazer amar e respeitar mais o país - porque não faz. Só se o amor e o respeito forem coisas que eu não sei muito bem como são, mas isso até já desconfiava.

(gostei de ouvir o daniel oliveira no prós e contras)

sábado, junho 14, 2008

120 anos

"Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra ,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra. "

Pelos vistos estão a tentar disponibilizar online mais de 1000 livros e cerca de 2300 papéis do espólio de Fernando Pessoa. Tudo o que ele escreveu será acessível para todo o mundo. Fiquei contente.
Intriga-me como este homem consegue ser tão intemporal e omnipotente. Nunca pensei grandes coisas para além do que ele já tivesse dito.

sexta-feira, junho 13, 2008

santos televisivos

Ontem, ao ver as marchas de S. António na televisão descobri que sou bairrista.
O São João é que é fixe.
Nunca tinha acompanhado em directo o tal festejo. Achei-o morno e decadente.
Primeiro apareceu-me uma jornalista inexperiente a entrevistar um homem muito suado que carregava uma espécie de altar.
- "Então, isso é muito pesado?" - pergunta ela.
- "É" - responde o homem com mais uma pinga de suor.
- "Quanto quilos, sabe?"
(isto é profundamente estúpido, por isso continuei a ver)
Pelos vistos, cada bairro tem uma madrinha e um padrinho para representar não sei bem o quê.
A Cinha Jardim está vestida de um azul inexistente e perdeu um brinco durante a marcha. É a madrinha do bairro de Alfama e diz: "Eu adoro isto!".
Tudo me pareceu chato, artificial e demasiado colorido. E depois todo aquele aparato televisivo, a bancada vip, o Rui Rio.
Não vemos quem está na rua, se o povo bebe cerveja ou vinho, as varizes das velhas, as camisas dos homens, as sardinhas da afurada, os martelos dos chineses, a gente, a gente, nós caralho.
Lisboa menina e moça, pois és.

(se calhar foi tudo culpa da televisão)

segunda-feira, junho 09, 2008

In US

Ela diz que quer guardar tudo no cacifo, que a vida é muito mais segura assim, dentro do cacifo e principalmente quando se é mulher e se viaja sozinha. Ela reafirma ter tudo controlado, gordinha, míope, tudo tão controlado. Viaja há já 7 meses e sempre com medo de ser roubada, violada, estropiada. Tem uma mala daquelas duras com código e carrega-a orgulhosamente pelas escadas acima. Está a ficar vermelha, não, desculpem, afinal já vinha vermelha da porta, e eu ofereço-me para ajudá-la a carregar a sacaria. Não, não, obrigada, eu tenho que carregar tudo sozinha, estou a viajar sozinha, disse para mim mesmo que não devia aceitar ajudas para carregar malas, tenho que as aguentar.
Depois apareceu o americano peregrino que dizia "cafe con leche" e "buenos dias" quase compulsivamente. Pé ligado e a roupa a precisar de ser lavada. Perguntou à da mala dura se queria dividir o custo da máquina de lavar.
- Desculpa mas não vai dar, afinal já tenho tudo controlado, a roupa lavada dentro da samsonite e como é que podia misturar as tuas meias suadas, defuntas, talvez restos mortais de bolhas, com as minhas cuecas imaculadas. Tomo no mínimo 3 banhos por dia e a primeira vez que bebi alcóol foi na Irlanda. Uma guiness e claro, só depois de ter feito 21.

sexta-feira, junho 06, 2008

divórcio

Não, não era verdade o que eu escrevi acerca das baratas. Afinal detesto-as Sara, odeio-as, não as percebo nem as aceito.
Hoje, logo hoje e eu exageradamente sensível às 3 da manhã com vontade uma tosta mista. E as baratas a devorarem-me o desejo do queijo antes que eu pudesse satisfazê-lo, sim, as baratas, foram comer a minha vontade antes que eu comesse fosse o que fosse. Pequenas, grandes, médias, terríveis, e eu a pensar se eram elas que me estavam a invadir a cozinha ou se era eu, nós, que invadíamos o mundo com prédios, fornos, máquinas, medos. Deixei a luz da cozinha acesa e vim para a cama escrever este texto preto, barato, repelente, mas que pelo menos sei que acaba aqui, que acaba quando quero e a colónia de insectos para quando será.


(abro a janela, acendo um cigarro e pergunto-me se as baratas terão medo da luz como algumas pessoas têm do escuro)

segunda-feira, junho 02, 2008

passa e amassa

Voltar a certos sítios onde passamos muito tempo da nossa vida é quase sempre complexo. Pode ser agradável ou doloroso, mas é complicado das duas maneiras. Por exemplo, hoje quando regressei ao trabalho de atelier depois de uma curta temporada sem por as mãos nas canetas e nos pincéis, senti no dedo mindinho do pé o peso da ausência. Fez-me impressão a naturalidade com que as coisas se detrioram quando alguém não está por perto. Ou seja, o normal é tudo se estragar com o tempo e nunca o contrário. E andamos aqui a lutar contra não sei bem o quê. Não quero falar de invenções estranhas como a a tristeza que todos sentimos a obrigação de acreditar que com o tempo ela tende a passar e não a aumentar (o que também pode acontecer). Não, falo das coisas que vemos e que existem, daquelas que tocamos com as mãos todos os dias, da matéria apalpável, amorosa e desejável.
Hoje, ao ver metade dos pincéis duros e presos a tinta seca, papéis invadidos de pó, a lâmpada fundida da casa de banho - senti-me pouco dona de qualquer coisa, não sei muito bem o quê.