sábado, fevereiro 28, 2009

segunda-feira, fevereiro 23, 2009

antecipação da primavera

É nestes dias de sol, que ao coçar o cérebro de certas irritações mentais, me entrego à luz inaugural das manhãs e amo cada mochileiro ignorante que por aqui passa.

notas:
(eu também sou ignorante)
(amo igualmente os mochileiros que não são ignorantes)

quinta-feira, fevereiro 19, 2009

verde

Gosto de alcatifa gasta. Está gasta por toda a casa. Conta-me o tempo e o peso dos pés. E, de tão gasta, começa a anunciar a camada que está por baixo. Por baixo está uma espécie de rede pixelizada bege - há manchas que me explicam os percursos que gosto de fazer. Entro sempre pelo mesmo sítio, estou a vê-lo da cama, está gasto da minha monotonia. Podia pelo menos, de vez em quando, entrar mais encostada para o lado do puxador. Que ficasse aí o testemunho de alguma coisa que só faço de vez em quando. Mas não, a matéria não mente, o que está gasto gasto está, e nós para aqui a olhar a ver se ela se põe nova outra vez e me mostra o tamanho antigo dos meus pés.
Hoje prometi a mim mesma não escrever nada que fosse nostálgico. Não sei se as alcatifas são nostálgicas ou não. Talvez por nunca poderem ser limpas dos ácaros devidamente, representem o processo da infinita acumulação que nos gere. Não quero acabar o texto aqui. Falta o remate final, quando se dá aquele nó que une as coisas escritas acima. No quarto da Lé, o chão está cheia de linhas soltas e bocados de tecido que se agarraram à alcatifa já há muito anos, e que o aspirador não as consegue tirar.

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

natas

A Berta diz que há gente que defuma as casas. Eu não conhecia esta prática. A única coisa que me lembrei quando ela disse aquilo foi de salmão e presunto.
Defumar é, basicamente, limpar a casa dos espíritos malignos do inquilino anterior.
- Sim, porque há pessoas que podem tolher a nossa vida - continua.
Então é assim: com medo que nos tolham a vida, mais vale que defumemos a casa.
E como é que se defuma?
Compram-se umas coisas naquelas lojas e depois dizem-se umas palavras para os cantos da casa.
Não é qualquer um que pode defumar, tem que ser daqueles repórteres especialistas no além. Cartas e essas coisas. Outro dia conheci uma. Disse que sabia tombar pessoas, tombava pessoas do mal. Pensei quem eram as pessoas do mal. Como se pertencessemos a algum repartimento moral. Olha que aquele, é uma pessoa de bem. Mas enfim, se formos do mal, há que ter cuidado em sentarmo-nos na cadeirinha, senão vem a Rosa e pumba - já estamos tombados.
Não sei se alguém já me quis tombar ou tolher.
Naquela noite, sem me conhecer, a Rosa disse que via tristeza nos meus olhos e eu comecei alegremente a comer o prato de bacalhau com natas.

(a Berta deve ter falado da minha avó ao subir a calçada)

quarta-feira, fevereiro 11, 2009

tisanas

"Às vezes penso: os nossos sentimentos são como uma espécie de esparguete em aço, em que cada segmento está totalmente imiscuído no todo mas ao mesmo tempo é distintamente apercebível. Outras vezes penso: não, os nossos sentimentos são como uma floresta de esparguete de aço em que cada segmento emerge só parcialmente distinto. Na ponta de cada uma dessas varas vibra uma formação algo rendilhada, consequência dos constantes tremores de cada segmento, e assim, quando alguém está sob o império de funda emoção, tudo nele treme e na floresta tudo vibra e essas extremidades rendilhadas formam rapidíssimos desenhos, imiscuindo-se uns nos outros, e o total é uma combinação de vibrações que se sobrepõem e explicam a confusão que se encontra no indivíduo sob o império da emoção."

Ana Hatherly

sexta-feira, fevereiro 06, 2009

segunda-feira, fevereiro 02, 2009

avó e computador

Não sei se deva procurar um sentido para tudo o que acontece. Isso contraria a natureza caótica do mundo e reduz-nos a figurantes.
Durantes estes anos todos (poucos) forcei-me a pensar que as coisas aconteciam porque tinham que acontecer. Espera aí, talvez o facto de aceitar certas coisas como são, e exclusivamente as coisas que acredito não poder mudar, seja um acto profundamente estóico.
Porra, ainda que tenha um trabalho importantíssimo para entregar amanhã, prefiro vir para aqui cuspir fluídos psíquicos.
Hoje tudo me parece banal mas profundamente único.
O computador que comprei há um ano e por quem tinha enorme carinho, estragou-se ontem a meio do tal trabalho importante. Um especialista de computadores, amigo de longa data, disse-me para não ter muitas esperanças em recuperar a informação. Está bem, eu não tenho. Pus-me agora a pensar o que ficou ali e não senti grande coisa. Quer dizer, senti, mas foi insignificante. Perdi registos, muitos registos que não sei como recuperar. O passado electrónico não pertence a ninguém.
A minha querida avó materna morreu há uma semana e eu passo os dias a tentar recuperá-la dentro de mim. Tenho medo da memória. Ontem o computador perdeu a sua sem mais nem menos. Tenho medo da memória. Não quero que ela venha para aqui com as suas selecções esquisitas de momentos. Avó, eu não quero esquecer nada que tenha a ver consigo. Quero registar todos os cheiros e todos os seus gestos. Quanto tempo demorava o seu silêncio. O facto de amá-la assim faz com que o meu disco rígido seja mais resistente que os da apple.