sexta-feira, agosto 29, 2008

a sudden gust of wind

água

Cheguei a casa. A minha mãe.
A minha mãe estava de branco e comia um pão de cereais com azeite.
No balcão da cozinha um chá de rosas. Eram botões de rosa cor de rosa botoezinhos assim pequeninos que depois ficam mais bonitos e abertos com a água a ferver. A casa estava a uma temperatura perfeita. A casa tinha sido pintada há dois dias e nem cheirava a tinta como eu gosto. Seco, branco e luz. Espaço e rosas pequeninas que bebemos as duas. Lembrei-me da palavra purgatório. A minha mãe usa camisas de noite brancas que parecem sempre passadas e cheiram ao chá. Depois a minha mãe perguntou-me se eu queria ir almoçar a um vegetariano chamado terra. No terra comemos tofu e arroz integral. Ela pediu um sumo de banana, iogurte e canela e disse várias vezes e todas as vezes como se fosse a primeira:
- Este sumo que está óptimo.
Acho que a sua intenção era que eu pedisse um sumo igualmente de banana, iogurte e canela, mas a mim não me apetecia e por isso não pedi. Pedi uma água das pedras que vinha fresca como eu gosto e não comi sobremesa porque não me apetecia. O telemóvel tocou uma vez e eu não atendi. Viemos as duas a pé pelo mar até a casa, onde eu adormeci por opção.
Escrevi este texto para quem não gostou do sangue do texto anterior. Há sempre alguém que não gosta.

segunda-feira, agosto 25, 2008

a massa

Ela disse:
- O quê, o meu bacalhau com natas não é bom? Tu nunca provaste o meu bacalhau com natas.
A irmã respondeu que já tinha provado e não tinha achado assim nada de especial, naquela quinta feira em que todos comemos juntos. Eu não estava nesse dia. Afinal o bacalhau tinha natas a mais, acabou por confessar a primeira, mas eu sei fazer esse prato que é uma maravilha.
Ela quase que podia ser alta e já foi loira um dia. Não sei desde quando é que quer continuar a ter uma cor na cabeça que já não tem. Não sei onde estava eu nessa quinta feira onde a cor do cabelo talvez se pudesse confundir com a cor do prato e está a apetecer-me vomitar lascas de pensamentos salgados sem qualquer grau de parentesco.
Talvez tenha sido no dia do bacalhau em que conheci a outra senhora de azul que gostava de falar de sangue. Um homem dali morreu e o sangue a sair-lhe pelas orelhas, pelo nariz e tudo. Falava em sangue e bebia leite. Ao lado, cassetes com cantores de penteados duvidosos e olhares penetrantes assistiam frios e impunes à conversa avinagrada. É a vida, olhe, tão novo. E o cantor em silêncio. Só ela falava, a senhora de azul. Eu, que estava com um vestido preto às flores brancas, senti-me possível toalha onde possivelmente se pudesse colocar um prato com peixinhos fritos do rio e recordar entre duas espinhas, possíveis feitos históricos do homem recentemente vivo.
Só não gostei quando vi o saquinho branco do sangue do frango no balcão da cozinha onde se fez o bacalhau com natas. Era arroz de cabidela para o almoço e sinto que este texto está mal cozido e ainda não se lhe tiraram as entranhas ao pito. Na mesma cozinha onde na quinta feira se fez o bacalhau com natas que eu não pude provar, estava um saquinho de sangue fresco para juntar ao arroz. O saquinho parecia daqueles antigos com leite do dia mas tinha sangue em vez de leite, ainda que ambos sejam símbolos de vida e fertilidade. Reparei que o sangue estava cheio de conservantes. Afinal não custa nada comer aquilo, não está tão vivo assim. Isto de matar o bicho e manter o sangue fresco com meia dúzia de números e E´s é de um cinismo atroz.
O que diria a senhora de azul quando visse isto, talvez:
- O meu arroz de cabidela é melhor que o teu, nunca provaste um assim.
Os cantores das cassetes fechados em armaduras de metal, mortos desde sempre naquele mostrador que roda e nós vamos vendo as caras deles ou eles as nossas.
Que fome, dizem, há tanto tempo que não via uma toalha tão bonita.

sexta-feira, agosto 01, 2008

pequenez

Como isto foi acontecer não sei bem. Não quero saber.
Entro no Sr. Júlio com um saco de batatas na mão para lhe oferecer. Vinha pesada, não sei se das coisas na mão ou na cabeça.
Passo o balcão e entro para a cozinha como se fosse minha, há espaços que se tornam nossos porque os já imaginámos antes. Deixo cair o saco e está lá ele, de avental branco e olhar satírico.

- Oh menina, então diga lá como é que se foi lembrar do Big Júlio.

Aquele "big" antes do nome soou-me estranho, mas ignorei-o. Aliás, pensei que se estava a referir às batatas, tipo - oh menina diga lá o que lhe deu para se lembrar de mim enquanto podia oferecer batatas mas é à sua família. Mas não. É então que tira um pedaço de papel que estava em cima do frigorífico. As mãos, que parecem de ferro, acentuam a leveza daquele pedacinho branco com letras impressas.
Leio, leio-me, e encontro-me na cozinha a ler o que escrevi sobre ele e tudo o que aquela tasca significa para mim. Já não sei o que é real - se o que escrevi, se o que estou a ver.
Fico envergonhada. Ele diz-me que aquilo foi lá parar através de outro cliente.
Peço uns petiscos em busca da verdade.
É então que diz:

- A menina não tema pelo seu futuro. A menina escreve muito bem e sabe articular a imaginação. Não tema, ouviu?

O Sr. Júlio leu o meu blog.
Em papel, claro.