segunda-feira, outubro 27, 2008

insónia

Every word is like a knife
But the silence cuts you twice

quinta-feira, outubro 23, 2008

nada é meu senão uma ideia ou outra e mesmo assim

As coisas fogem-nos, assim, tão le n ta m e nte.
No sábado assaltaram o polo, tadinho dele com aqueles olhinhos expressivos que brilham de noite quando lhes carrego no botão. Talvez tenha deixado as portas abertas porque no dia seguinte não havia sinais de arrombo ou vidros partidos, o que torna o assalto de muito maior relevância porque passam a ser duas partes que têm culpa. Roubaram um maço de cigarros quase vazio e um soutien preto do continente (ainda com etiqueta) que a mãe me tinha oferecido no dia anterior.
Dois dias depois, o carro a ser rebocado. Vejo-o de pernas para o ar e vou a correr para a carrinha azul com 2 polícias lá dentro. Aqueles dois abutres fizeram-me lembrar aquelas estátuas de areia que participam em concursos veranis e aparentemente conseguem resgatar os turistas errantes do absoluto tédio do apartotel.
Peço-lhes para não levarem o carro. Não levam. Peço para não pagar os 70 €, mas isso já não podem, para além do mais já está tudo passado para o papel,
- Não vê? O papel.
Eis senão quando as lágrimas em cascata pela cara abaixo e continuo a chorar compulsivamente, não, compulsivamente não, foiapenascontinuamenteassimeaspalavrasmolhadasoxalá
molhassemtambémoshomenseasestátuassedesfizessem.
No dia seguinte a este desabafo universal com o mundo mediado por duas bestas, chove no Porto. Saio do carro, pego na pasta cheia de fotocópias/apontamentos/possibilidades e sem reparar como,

as folhas todas pelo ar a voar em fila indiana
como se obedecessem a uma ordem divina
depois a chuva a trazê-las à terra novamente
estão agora algumas coladas à estrada
outras continuam na fila para voar
não vou atrás delas
isto de as coisas nos fugirem
espero que os deuses entendam a minha letra

quinta-feira, outubro 16, 2008

in the mood

tripar

Nunca chegamos ao essencial. Diz-se:
O que interessa é o que está por dentro. Mas o dentro é mistério e escuridão.
O dentro é o que não conseguimos ver e por isso temos a lata de dizer que é bom ou mau porque ninguém pode provar o contrário.
O dentro são estas entranhas de que somos feitos, estes intestinos impertinentes, o fígado cansado, o coração em maratona. A minha outra avó está muito doente e eu não consigo ver nada. Tudo escuro, as doenças desenvolvem-se nesse sítio de dentro onde não se consegue ver. O que dirá o pâncreas do esófago? Nada. Convivem animadamente na escuridão absoluta, os cúmplices malditos.
O que importa é o que está por dentro. Não é nada.
Para além disto, a verdade é que temos nojo de tudo o que sai de nós, caca, sangue, catotas. Pois, porque já não nos serve. Não há injustiça senão em nós, que temos nojo das coisas.
O medo também não é flor que se cheire (sempre responsabilizei o medo por todos os males do mundo), mas pelo menos é mais animal. Agora o nojo, o nojo é uma construção humana complexa. Implica essa noção que somos uns seres assépticos que não somos, provoca-nos a mais diversas doenças, rouba-nos a imunidade mental e física.
Não sejamos enojados. Ontem, a Graça trouxe-me rojões e eu comi tripa enfarinhada pela primeira vez. Deixei um bocadinho no prato e fiquei desiludida comigo mesma.
(tripa não é nojo, é bom, mas é demasiado impositiva para um jantar tardio)

quinta-feira, outubro 09, 2008

macaco (2)

macaco

Como toda a gente, só disponho de três meios para avaliar a existência humana: o estudo de nós próprios, o mais difícil e o mais perigoso, mas também o mais fecundo dos métodos; a observação dos homens, que na maior parte dos casos fazem tudo para nos esconder os seus segredos ou para nos convencer de que os têm; os livros, com os erros particulares de perspectiva que nascem entre as suas linhas. Li quase tudo quanto os nossos historiadores, os nossos poetas e mesmo os nossos narradores escreveram, apesar de estes últimos serem considerados frívolos, e devo-lhes talvez mais informações do que as que recebi das situações bastante variadas da minha própria vida. A palavra escrita ensinou-me a escutar a voz humana, assim como as grandes atitudes imóveis das estátuas me ensinaram a apreciar os gestos. Em contrapartida, e posteriormente, a vida fez-me compreender os livros.

in "Memórias de Adriano", de Marguerite Yourcenar



(este livro é tão nobre de espírito, tomara toda a gente nascesse de palavras assim, fiquemo-nos pelas estátuas então)

quinta-feira, outubro 02, 2008

momentos descontínuos

A Júlia pediu-me que lhe pintasse dois quadros para a sua casa nova.
Pinta-me dois quadrinhos?
Pinto, mas não sei quando.
Está bem, vou então comprar as telas ao chineses e já volto. Tenho um sofá cor de chocolate.
Comoveu-me o recurso à metáfora, mas desde quando é que ela deixou de dizer castanho?
Talvez tenha sido nesse dia que o Patrick deixou a pasta de amendoim no hostel. É estranho lidar com sítios de passagem. Por fora escreveu o seu nome a verde, mesmo antes de me oferecer um agulha de tricot para eu conseguir ler melhor os ficheiros de computador.
Sempre que me sento naquele terraço.
Sempre que me sento naquele terraço a fumar um cigarro, contrariada por fumar um cigarro e contente por ceder à contradição, eu sou o Porto. Eu sou isto e eu amo esta cidade tal como ela me ama a mim. As gaivotas histéricas, constantes, os dias em que sinto irritantemente feminina. Aquele sino da Sé, um golo de cerveja para olear a estrutura enquanto defino o que ainda tenho para fazer no tempo que me resta para acabar o turno. Entende-me, eu estou aqui neste terraço. Ainda há um lampião do lado de baixo da travessa que acende e apaga. Acende e apaga, sempre foi assim, tenho medo que se apague de vez e acabe o jogo. O jogo consiste em arranjar uma justificação para tal desordem. Olha, vai por ali uma pessoa a passar, se calhar vai acender nesse momento, mas também depende do tipo de pessoa. Ideias carregadas de cepticismo, a luz que acende e apaga. Nunca acreditei em soluções brilhantes.
No terraço ouvem-se os diospiros do jardim abaixo a cairem. Imagino-os doces e rasgados na relva, à espera que algum de nós os apanhe, mas que forma mais altruísta de se matarem.

quarta-feira, outubro 01, 2008

tudo deve ser contado pelo menos uma vez

Tudo o que nos acontece, tudo o que falamos ou nos é narrado, tudo quanto vemos com os nossos próprios olhos ou sai da nossa língua ou entra pelos nossos ouvidos, tudo aquilo a que assistimos (e por que, portanto, somos de certo modo responsáveis), há-de ter um destinatário fora de nós, e esse destinatário vai sendo seleccionado por nós em função do que acontece ou nos dizem ou então dizemos nós. Cada coisa deverá ser contada a alguém - nem sempre a mesma pessoa, não necessariamente -, e cada coisa vai-se colocando de parte como quem folheia e aparta e vai destinando prendas futuras numa tarde de compras.

Tudo deve ser contado pelo menos uma vez, ainda que, como havia determinado Rylands com a sua autoridade literária, deva ser contado segundo os tempos. Ou, o que vem a dar no mesmo, no momento justo e às vezes nunca mais se não se soube reconhecer ou se deixou passar deliberadamente esse momento preciso. Esse momento apresenta-se às vezes (a maioria das vezes) de maneira imediata, inequívoca e compulsiva, mas muitas outras vezes apresenta-se apenas confusamente e ao fim de lustros ou décadas, como acontece com os grandes segredos. Mas nenhum segredo pode ou deve ser guardado para sempre do conhecimento de toda a gente, é forçoso que encontre pelo menos um destinatário uma vez na vida, uma vez na vida desse segredo.
É por isso que algumas pessoas reaparecem.
É por isso que nos condenamos sempre por aquilo que dizemos. Ou por aquilo que nos dizem.

Javier Marías, in "Todas as Almas"