domingo, julho 27, 2008

rotas

Adorava saber o que se passa cá dentro quando me sinto cansada.
E porquê, porque raio é que nos sentimos cansados. Quem é que me programou de forma a que se dormir 6 em vez de 8 horas eu vou ter que ficar assim, rota, toda rota como se costuma dizer. Rota quer dizer com buracos, e pelos buracos deixamos entrar (ou sair) coisas que não queremos (ou queremos). Estou toda rota, e mais uma vez é a escrita que me faz perceber as coisas, organiza-me o que sinto, é a mulher a dias do meu pensamento.
(lembrei-me agora que rota pode ser caminho e vou tentar aproveitar-me disso para me sentir melhor, mas só quando acabar este texto)
Entretenho-me a pensar na palavra em vez de sentir o cansaço. A minha avó não diz rota como eu digo, ela só a usa para quando há tecidos com buracos e pede à Lé para cosê-los.
- Celeste, esta camisa está rota.
A Lé é a costureira, cose coisas, mas eu não sei coser como ela, ao menos se conseguisse medir e cortar o que sinto. Estou cansada mais 10 cm do que o normal, peguemos na tesoura e deixemos cair na alcatifa fios, linhas e pedaços de coisas que não nos servem. Ela mexe com tecidos e eu olho para a minha pele, parece-me meia baça de não ter dormido, penso:
- Lé podias engomar-me a cara, passavas-me a boca e os olhos a ferro, o nariz não está tão mal assim. Passa a minha pele com esse ferro dos antigos que não é de plástico como os que se encontram na worten, uma modernice que não serve para nada dirias.
Já que és professional e tens uma singer, cose-me depois os buracos que me fazem sentir rota, que eu fico com a parte da limpeza. Deixa que eu pego na vassoura, junto as palavras todas num cantinho, empurro-as para o apanhador e deito-as aqui.
Obrigado.

quinta-feira, julho 17, 2008

restos

Quando fiz anos a minha irmã ofereceu-me um frasco de espargos verdes marca continente .
Adoro espargos verdes. Quando era nem criança nem adolescente ia com a minha avó ao carrefour e ficava a olhar para a prateleira das conservas para poder comparar os preços entre os espargos brancos e verdes, gordos ou magros, de lata ou vidro.

- Avó, hoje posso levar espargos?
- Não se pode vir com vocês às compras.

As idas ao carrefour tinham carro, cheiro e horas próprias. Íamos com uma amiga não muito velha da minha avó chamada Laidú. Sim, Lai Du. Uma mistura de chinês com crioulo. Ela própria tinha um cabelo bastante étnico, qualquer coisa entre um penteado afro e uma banalíssima "mise" ocidental. Poucas vezes lhe vi aquele cabelo - usava daqueles lenços plastificados para a cabeça como se estivesse sempre a chover. O carro era com estofos fofos, quentes, cinzentos, uma delícia para as viagens até Gaia que me pareciam longas.
Após uma hora e tal, a Laidú regressava sempre com dois ou três sacos meios frouxos, nunca percebi bem o que andava para ali a fazer durante tanto tempo.
Hoje abri o frasco dos anos no hostel, mesmo antes de almoçar.
Os aperitivos sempre me souberam melhor do que qualquer outra coisa.
Pensei que talvez houvesse uma maionese perdida de alguém que já foi embora.
Estavam lá várias, tipo hipermercado.
Escolhi a Calvé, a minha favorita, para misturar com os espargos.
Imaginei a Laidu à porta do Carrefour à minha espera, o canadiano que deixou aquilo ali, a minha irmã a tirar a prenda da carteira, a minha avó a dizer sim podes levar, e conclui mais uma vez que ver o todo em vez das partes é sempre muito mais interessante.
Esta coisa da vida é complexa e por isso difícil de se ver. Tal como uma uma teia de aranha. Convém sempre vasculhar o que resta nos cantos dos frigoríficos.

dedão

Como é que hei-de explicar, o dedo grande do pé dela, o dedo grande do pé dela não parecia dela. Sempre me surpreenderam os dedos grandes dos pés das pessoas, costumam ter personalidades fortes e têm ar de chefes. Bom, estávamos num casamento e as mulheres sempre tão sacrificadas para estarem bonitas, sempre tão bonitas, por vezes vezes enjoativas, mas vá lá, voltando ao dedo do pé da outra. Eu estava sentada numa poltrona de cor bordeaux à espera de fazer xixi, e olhava para o chão deliciada com os veios da madeira. Eis que se ouviu o som dos tacões de mulher no taco da madeira, tacões no taco, é assim mesmo e sem querer acabei de fazer uma espécie de música. Continuo a olhar para o chão e aparece um pé dentro de uma sandália de tacões fininhos, daqueles agulha. A sandália tinha duas tiras também elas fininhas e uma apertava o dedo grande do pé da senhora e este levanta-se ligeiramente da sola como se quisesse fazer uma pergunta. A tira apertava este dedo e este dedo não tem mais nada, começa a inchar e a falar comigo ou com a minha bexiga. Porque é que eu estou aqui, esta merda dói caralho e porque é que sou só eu que estou asfixiado, mais nenhum dedo deste pé nem do outro sofre como eu sofro. A certa altura aquele dedo ria-se de dor e gemia, tentando encontrar um espaço digno e livre. A certa altura pensei nas partes do meu corpo que não conheço muito bem, nuca, costas, rabo, o que dirão eles de mim. A certa altura, aquele dedo parecia não pertencer a corpo algum, e apesar de estar sob a ameaça da tira - vivia orgulhosamente o seu cargo de chefia e impunha-se aos seus quatro súbditos, quer dizer, ainda que haja uma porra de gente com o segundo dedo do pé mais comprido do que o primeiro, o primeiro é sempre o primeiro e concluo com isto que as mãos são mais democráticas que os pés.

terça-feira, julho 08, 2008

ou vir e sem tir

O carro estava em condições. Quando chegou a minha vez tive que sair de dentro da viatura enquanto um jovem se punha a acelarar a fundo no meu pedal. Aproximei-me de outro homem com ar de ter qualquer função e resolvi fazer conversa. Então diga lá o que é analisa nesse ecran, e que tal está o pólinho, e que números são esses senhor, que números são esses que eu não os conheço e me são tão indiferentes que acaba por se tornar absurdo este diálogo. Mas explique-me hoje aquilo tudo aquilo que eu não sei, ainda que amanhã já tudo possa ter esquecido, quem sabe fica qualquer coisinha.
Foi então que este homem falou-me com imenso orgulho e desmesurada paciência de azotos, carbos e óxidos. Tinha voz de professor e olhos de pai.
Depois perguntou-me se eu andava sempre na cidade, e eu disse que sim pensando em curvas/campos/vinhas, e ele disse que eu devia puxar mais pelo motor e eu respondi "está bem" enquanto sentia nas mãos e nos pés a explosão do dito cujo da última vez que resolvi puxar por ele.
Há sempre uma inevitável carga de mentira quando tentamos evitar discordar de um pai ou professor.
Não costumo mentir, acho.

sexta-feira, julho 04, 2008

inspecção

Sim, e agora a quem agradeço, sempre foi essa a minha dúvida, a quem é que devo agradecer por andar por aí sempre mais ou menos contente. Eu aqui na fila da inspecção do carro, e a saber que ontem à noite é que devia ter escrito este texto, era ontem sra.preguiça, afinal eu é que tinha razão. Ontem é que me sentia assim, tão divinamente grata a alguém (divinamente no sentido lato do termo que não sei se existe), tão pessoal e intransmissível. Sim, sempre gostei de ver estes termos nos cartões e afins, dá-lhes um carácter humano que estes não têm.
Hoje estou numa fila e muitos homens de fora dos carros a acenderem cigarros enquanto esperam pela sua vez, eu própria acendo um cigarro antes de abrir o computador para escrever isto onde me quero assumir humana, irrepetível e por sorte até feliz.
Pode ser que apanhe o senhor do ano passado, aquele que mora ao pé da minha casa e por isso resolveu falar sobre as palmeiras e o rio enquanto testavam os pneus ao polo. Talvez este ano o carro não esteja com os pneus em condições, e o senhor já nem trabalhe aqui ou então já não more na minha rua o que vai limitar definitivamente os possíveis temas da conversa.
Dizem que posso avançar, mais um bocadinho à frente menina, está bom aqui. Sinto-me a atingir uma meta. Se pensar um bocadinho mais sei que não atingi absolutamente nada. Tenho que fechar o computador.

terça-feira, julho 01, 2008

jeo

Tocaram dois seres à porta. Estava a trabalhar a tentar explicar o que era a torre dos clérigos a uma coreana que se ria com tudo o que eu dizia. Acho piada quando se riem assim, apetece-me rir por cima deles até ver quem é que se ri mais, até a palavra se desfazer em som e dialogarmos apenas através de gargalhadas mais ou menos explicativas. Ri-te Win Chu que eu rio-me contigo.
Entretanto pois, já tinham tocado. E estão lá fora dois homens que não podiam ser hóspedes. Têm óculos de sol escuros a fugir para o "moderno", camisas azuis e passadas de manhãzinha pelas mulheres. Desconfio que eram feios mas não lhes cheguei a ver os olhos, como é que se pode falar de Deus de olhos tapados.
- Você acha que há solução para a morte?
- Não sei o que você entende por solução, mas agora estou a trabalhar.
- Olhe, gostávamos que ficasse com isto.

Fechei a porta e olhei para o folheto enquanto esperava por mais uma risada, mas ela não estava lá. Abri aquilo por respeito às palavras e não a homens, li um bocadinho da teoria dos jeovás, demasiadas imagens pensei eu, acabei por ler a frase " cuide sempre da sua saúde espiritual enquanto aprende línguas estrangeiras" e fechei o livro orgulhosamente.