quinta-feira, dezembro 04, 2008

dentro

O homem entra na camioneta com um terço na mão, ostentanto a sua fé e poder.
É grande, sujo, usa gravata e tem barriga. A gravata repousa resignada na curva da pança e não consegue chegar até ao cinto. As gengivas são escuras, ainda que não as tenha visto.
O homem usa gargalhadas secas e altas para reagir à série cómica e estúpida que passa na televisão. Acho depravado tantos passageiros serem obrigados a ver o mesmo filme e a ouvir as gargalhadas de homens como este.
Gosto de ir ao cinema porque está escuro, podemos chorar à vontade sem que o vizinho da cadeira 26 nos desvende a cara molhada. Mais: no cinema não há a possibilidade de escolher a posição da cadeira. Na primeira meia hora de uma viagem entrego-me à angústia de não saber se devo ficar com as costas verticais ou então carregar naquele botãozinho e reprimir as pernas do senhor de trás.
O homem sujo repara nos nossos sapatos lamacentos e começa a apontar com os dedos inchados para o tapete de entrada feito de papel de jornal. Tínhamos que ter passado os pés nas notícias antes de entrar na camionete. Perdoou-nos de forma indecisa por sermos estrangeiros.
As mulheres à minha volta usam lenços na cabeça, normalmente às flores, que denunciam por vezes o comprimento do cabelo. Imagino-me a arrancar-lhes o tecido e a cultura - não sei se é lata ou não - mostra-me esse preto do teu cabelo, será um pouco ondulado, aposto que é brilhante, se te mexeres ele mexe contigo, e a cor das tuas pernas, terás varizes internas ou externas, não faz mal nem uma coisa nem outra.
Esqueço-me das cores delas, das gengivas do outro, da chuva lá fora.
Abro "Memórias de Adriano" e recomeço a viagem paralela.

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