segunda-feira, junho 29, 2009

robert larga o ice tea e dedica-se ao porto

Estou aqui, aqui mesmo. Por momentos percebo onde estou, não sei quanto tempo vai durar. Estou sentada nesta carpete preta. Ou no tapete negro. Não, nem uma coisa nem outra - estou sentada no tapete preto que é como me ensinaram a falar.
Já não me lembro do dia.
Estou sentadinha assim, quase a doer-me o rabo, apesar do tapete ter uma espécie de pêlo.
Daqui vejo bem os pés do Robert, que está do outro lado do sofá. Os pés do Robert são largos como barbatanas usadas que foram alargando com o tempo. Os dedos são grandes, consistentes e secos, parecem pequenos troncos de lenha preparados para arder na lareira do vizinho. Digo vizinho porque não temos lareira aqui e não calha bem a metáfora.
O Robert só bebe vinho do porto desde que chegou ao Porto e eu acho-lhe piada por isso. Uma coisa tão simples de se fazer. Beber a coisa típica da cidade por onde se anda. Tirou uma foto do cartaz publicitário da Ramos Pinto e fez uma montagem fantástica no photoshop: em vez das cabeças dos dois personagens vintage, aparecem duas fotografias do próprio Robert. O Robert a olhar para ele mesmo, e o belo anjo a segurar-lhe um copo cheio de idiotice e desilusão.
(desilusão porque o Robert disse-me há pouco não acreditar no amor, e idiotice porque ele é um nadinha de nada idiota. Daqui de onde estou vejo-lhe o modelo das sandálias que usa pela forma do escaldão que tem nos pés de urso, mas isso não o faz muito mais idiota do pouco que já é)
O Robert, para além de beber coisas típicas da cidade onde se encontra (neste momento vive na Rússia e bebe vodka), trabalha 6 semanas sem parar e depois galanteia-se outras 6 semanas a viajar. Ora trabalha, ora viaja. Gosto dele por isso e por beber vinho do porto com gosto mas sem distinção.

sexta-feira, junho 26, 2009

carlos drummond de andrade


(...) O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida. Não apenas o sol, mas tudo que ele ilumina. Tudo que se faz sem você, porque com você não é possível contar. Você esperando que os outros vivam, para depois comentá-los com a maior cara-de-pau ("com isenção de largo espectro", como diria a bula, se seus escritos fossem produtos medicinais). Selecionando os retalhos de vida dos outros, para objeto de sua divagação descompromissada. Sereno. Superior. Divino. Sim, como se fosse deus, rei proprietário do universo, que escolhe para o seu jantar de notícias um terremoto, uma revolução, um adultério grego — às vezes nem isso, porque no painel imenso você escolhe só um besouro em campanha para verrumar a madeira. Sim, senhor, que importância a sua: sentado aí, camisa aberta, sandálias, ar condicionado, cafezinho, dando sua opinião sobre a angústia, a revolta, o ridículo, a maluquice dos homens. Esquecido de que é um deles. (...)

quarta-feira, junho 17, 2009

fim da tarde solto

É o medo que o tempo traz. O tempo sem palavra e sem desenho. Há um tempo de silêncio, sim - sem palavras, sem desenho, só porque deve ser. Há verbos mais inquestionáveis que outros.
Só é preciso cuidado para não ultrapassar aquilo que nos é permitido. Há uma restrição absoluta e invisível desse tempo que apodrece e deixa o medo, velho resistente moribundo.
Como se tudo aquilo que está numa sala pudesse deixar de existir quando se desliga a tomada. Não vale a pena ficarmos com tudo para nós. A luz ficou apagada tanto tempo, é agora difícil ver os armários outra vez.
Mas entretanto confesso, amo-vos, palavras que não escrevi. Prometo-vos ser fiel. Com uma condição: saiam cá para fora.
Enquanto não existirem ninguém vos pode dizer que não valem a pena.

sábado, junho 13, 2009

tu, m(ed)usa

Penso que um autor deve intervir o menos possível na elaboração da sua obra. Deve procurar ser um amanuense do Espírito ou da Musa (ambas as palavras são sinónimas), e não das suas opiniões, que são o que de mais superficial nele existe. Assim o entendeu Rudyard Kipling, o mais ilustre dos escritores comprometidos. A um escritor, disse-nos, é-lhe dado inventar uma fábula, não a moralidade dessa fábula.

Jorge Luís Borges, in Nova Antologia Pessoal

segunda-feira, junho 08, 2009