quinta-feira, novembro 19, 2009

segunda-feira, novembro 16, 2009

páre, escute e olhe (quero ver este documentário)

Perdeu-se definitivamente o pudor.
Saio de casa apressada a pensar no haveria de dar à tia Lena nos anos. Uma medalhinha, pensei, depois de bater a porta. Ora aí está, uma medalhinha religiosa. A minha tia Lena converteu-se aos 45 depois de conhecer o homem da vida. A família estava convencida que a tia ia ficar a vida toda a cozinhar biscoitos de gengibre e a gastar os salários de funcionária pública com os sobrinhos. Enganaram-se. Numa excursão ao Egipto ela apaixonou-se por um senhor chamado Manuel Gregório. Casaram-se passados 4 meses depois do encontro nas esfinges. O Manuel Gregório era viúvo e católico convicto. Convenceu-a que temos direito à vida eterna em dois tempos.
Estava a chover e dirigi-me a uma ourivesaria muito perto de casa que vende ouro e prata em segunda mão. O estabelecimento é minúsculo, assim todo enviesado, não mais que 4 pessoas lá dentro. Eis que aparece uma loira perfumada chamada Vânia com um homem alto a botar corpo. Pareciam vila realenses descendentes de russos se é que isso já é possível.
Dei-lhes generosamente a minha vez enquanto me esforçava para sentir o que me queria dizer cada santa. Por momentos pensei que alguma pudesse pertencer a qualquer a vila realense russo e não achei grande piada.
O casal queria comprar uma capa para isqueiro em prata. Que coisa mais absurda. Meter um bic dentro e fazer de conta. A senhora da ourivesaria diz que não tem muita coisa, aliás, que a única capa que tem é uma em filigrana. A tipa olha para a capa de isqueiro em filigrana e diz isto para o homem encorpado:
- Oh babe, isto é um bocado à gay, não é?
O babe não responde. A mulher da ourivesaria também não disse nada e eu já tinha ouvido a voz da santa que me confessou querer fugir da Vânia e da loja enviesada.
- Babe, isto é à gay, não achas?
As salvas de prata começaram a tilintar. O ouro fez-me lembrar a viagem ao egipto da tia Lena. Meninos na primeira comunhão tão queridos quanto puros, com as meiinhas de renda puxadas até ao joelho. Casais apaixonados a escolherem alianças. Bebés a levarem água benta. O velho que vai comprar a jóia mais cara à secretária. Todo um mundo sem Vânias.
Meti-me na conversa e disse que era aquela a medalha que queria levar.

quarta-feira, novembro 04, 2009

rua

A florista invadiu-nos a entrada do solar. Abro a porta e tropeço nos molhos de crisântemos, dou de caras com os arranjos para os mortos. Cheira tudo a água e a verdes, faltam as velas e o silêncio duro dos sítios sérios para se poder velar ali alguém. Nunca tinha visto a menina Iolanda tão atarantada como nesta altura do ano. Ontem disse-me que no sábado ficou até às 4 da manhã a fazer arranjos.
- Oh menina, e nem imagina o que foi para aqui. Os seus vizinhos fizeram uma festa até às tantas. Uns drogados, pertencem aquele grupo, os rastas. Era o dia das bruxas ou lá o que era.
- Oh dona Iolanda, deixe-se lá disso. Dê-me por favor um vasinho de incenso e outro de avenca.
(é princípio do mês e eu gosto de comprar plantas, dar-lhes nomes e abençoar os dias que chegarão)

Regressando aos mortos. Param carros e caras de todos os géneros à porta. É a única florista do centro, detém o monopólio do cemitério local. A senhora da loja dos bordados espreita para ver se conhece alguém. Tem pouco cabelo que arranja com minúcia. O marido tem cara de balão vazio como se um dia tivesse deixado a humanidade dentro de um edredon e nunca mais se tivesse lembrado que a tinha perdido. Vendem bordados, colchas, edredons, essas coisas, mas nunca os vi a venderem nada. A dona Iolanda, mulher altiva e determinada, nunca falou com o casal vago e vazio de poucos cabelos e muitos bordados. A Dona Iolanda está sempre na tagarelice com a menina da loja de antiguidades que fica plantada à porta a dizer que tem frio o dia todo e esfrega as mãos com método e perícia.

claude lévi-strauss (1908-2009)


Le monde a commencé sans l'homme, et il s'achèvera sans lui.