segunda-feira, março 31, 2008

lembro-te muito seriamente e ainda cheiras a naftalina

Ela recebia-nos todos os verões na sua casa com cheiro a naftalina. No primeiro de Agosto, depois de pousarmos as malas, entregava-nos as chaves de um velho armário com boiões de vidro que nos permitia o assalto massivo a diversos tipos de biscoitos. As mãos tão cheias de vontade, tão desprendidas de prazos,
calorias,
tretas da meia idade
(as crianças e os velhos não têm medo de salmonelas nem iogurtes fora do prazo).
Ao almoço bebia dignamente um - nunca mais que um - copo de vinho tinto que misturava com açucar. Trazia ao pescoço sempre o mesmo fio que carregava um segredo e por isso não o posso contar. O marido vivia só em fotografias e nunca tiveram filhos. Jurava a pés juntos que tinha um vizinho da frente chamado Pássaro Amarelo que limpava as escadas ao sábado e tinha mau feitio. Obrigava-nos a dar beijos num urso bem vestido com olhos feitos de botões verdes. Depois dos beijos, pousava o urso no parapeito da janela e eu acreditava que este, depois de beijado e arejado, nos reivindicasse uma espécie de protecção divina. Ainda acredito. Quando ela morreu deixou-me (para além das bolachas sem prazo de validade e da atracção pelo vinho) o mamífero, o fio de segredo pendurado e outras jóias que usava mas que eu não consigo tirar da caixa. Sinto-me tão feia com coisas valiosas no pescoço e nos braços.

1 comentário:

António A. Antunes disse...

Não me esqueço das unhas com verniz vermelho, o cabelo branco, tão branco - nunca depois existiu um cabelo tão branco como o da minha tia Nonó. Os sapatos com tacão, porque apesar dos 90, ainda um pézinho de dança. Torradinhas de pão irrepetíveis. Uma inesquecível poetiza que ao desafio dizia:
"quando me ponho a olhar,
com insistência o teu caco,
vem-me logo ao pensamento,
um rabo sem buraco."
Mais simples e bonito do que isto, é mesmo impossível, repetiu vezes sem conta, na hora em que chegávamos à sua Vila do Conde:
"os peixinhos do nosso mar,
tiveram muita alegria,
ao ver chegar a Nonó, ao ver chegar a Maria."


Porra, mary, só tu para arrastares a minha segunda-feira para dentro de um frasco transparente e gigante(que tamanho teria agora?)meio cheio de bolachas que nunca mais irei trincar.