quarta-feira, maio 17, 2006

pergunta

sera que faz sentido continuar a escrever?
continuo a projectar-me no passado ou rendo-me ao presente?

No interior da bahia, no interior da pousada

Depois veio a dona angelita e a sua pousada cheia de ninguém. Eu e ela vivemos juntas durante uns dias, à espera dos clientes que iam sempre chegar sempre no dia a seguir. A dona Angelita tinha 11 filhos e tratava-os de forma carinhosa mas distante. Muito calo. A mim, fazia-me todos os dias o pequeno almoco. Ouvia-a a chegar à pousada por volta das 6 e meia, cheirava a banana frita e a paozinhos de queijo. Era a unica cliente, mas isso dava-lhe um certo prazer. Eu, sozinha, num quarto para quarto pessoas e num hotel para 30. Eu. A Dona Angelita morava uns metros abaixo na porta numero 80, mas era como se vivesse na pousada. Era ela que tinha as chaves de tudo e os seus inumeros netos vinham comer a cozinha os restos do meu pequeno almoco. O dono nunca aparecia. Nao devia querer cumprimentar os clientes que ainda nao chegaram.
No principio falava com um sotaque reles brasileiro para que nos entendessemos, mas depois rendi-me ao meu sotaque tripeiro. Ela assumiu, orgulhosa, que "foi pegando o jêto".
Convenceu-me a comprar umas imitacoes rascas de havainas (que me fizeram bolhas nos pés) na mercearia do neto, e a arranjar as unhas no salao da filha que era pedicure semi-professional. Brasileiro é mesmo assim, sempre atento às possiveis necessidades dos turistas, na procura talvez inevitável de juntar mais alguns reais.
Na despedida deu-me um bilhetinho com o número da vizinha Maria. "Mi liga dipois, pa eu saber di voce".
A Dona Angelita não tinha telefone em casa.
Eu guardo o bilhete mas ainda nao lhe telefonei.

segunda-feira, maio 08, 2006

os ricos de baixo e os pobres de cima

A hierarquia carioca nao segue as regras convencionais. Na base da piramide estao os mais ricos, os empresarios, politicos, actores de novelas. Pelas encostas vao surgindo infinitos formigueiros quase ate ao topo, favelas feitas de gente e de casas construidas pelas pessoas de cima. As pessoas de baixo tem medo das de cima, mas prestam-se servicos mutuamente. Quem desce pode voltar a subir, quem sobe pode nao voltar a descer.
A magia não desaparece com a inseguranca que as vezes se sente.
Construcçao e natureza parecem viver um casamento feliz. Os morros exponenciam a beleza da arquitectura e a arquitectura denuncia a verdade dos morros.

A noite do rio é um circo sem palhacos nem palco. Todos participam.
O corpo é arma e alvo. Tudo para todos os gostos. Mulheres a cozinhar, artistas a cantar, gente a dancar. Efemeridade.
E corpo outra vez. Sempre. Beijos que surgem entre goles de cerveja partilhados ou passos de forro. O clima. Amanha nao existe. Subiremos la pra cima outra vez.

No ultimo dia vim ao Pao de Acucar, de onde agora escrevo. Nas placas de sinalizacao esta tb escrita - para quem nao sabe portugues - a versao inglesa: "Sugar loaf".
Ha poucos brasileiros.
Aqui é a unica piramide onde ricos nao tem medo de subir, e ainda se paga para entrar.
Reconheco com nostalgia o sotaque ingles da astraulia, o doce espanhol argentino.
Penso: "Se calhar ja passei a porta de vossa casa".
Ouvem-se camaras, muitas. Devem ter sido carregadas com muito cuidado ate aqui, taxis a porta do hotel a espera deles e das camaras.
Aparecem alguns portugueses.
Prezados turistas de imaculadas meias brancas: silencio por favor, chegou a vez de ouvir falar a minha lingua.

terça-feira, maio 02, 2006

bem vindo ao aeroporto sa carneiro, ate sempre memoria

Ja cheguei. Mas tenho ainda dois textos escritos que nao tive tempo de passar. Sobre o Rio, sobre o Brasil.
Depois de se sonhar acorda-se sempre na mesma cama. Os lencois sao os mesmos, o Porto tem manias e personalidade de velho. Não é uma desilusao.
Tirar um penso colado a pele que tem que sair. Chegar é ter que arrancá-lo. Doi, mas depois ate pode ser melhor ou pelo menos mais limpo. Vou continuar a escrever. A memoria nao me deixa parar. A vontade de viver tambem nao. Ate ja.