sábado, julho 25, 2009

sexta-feira, julho 24, 2009

de boca aberta com agustina - a saturação da servidão

Hoje estão em causa, não as paradas, que é tudo em que as multidões são adestradas, ou a guerra, a que se convidam; está em causa toda uma dinâmica nova para criar o habitat duma humanidade que atingiu a saturação da servidão, depois de há milénios ter dado o passo da reflexão. As pessoas interrogam-se em tudo quanto vivem. A saturação da servidão não é uma revolta; é um sentimento de desapego imenso quanto aos princípios que amaram, os deuses a que se curvaram, os homens que exaltaram. (...) Mas foi crescendo a saturação da servidão, porque a alma humana cresceu também, tornou-se capaz de ser amada espontaneamente; tudo o que servimos era o intermediário do nosso amor pelo que em absoluto nós somos. Serviram-se valores porque neles se representava a aparência duma qualidade, como a beleza, o saber, a força; esses valores estão agora saturados, demolidos pela revelação da verdade de que tudo é concedido ao corpo moral da humanidade e não ao seu executor.
Um grande terror sucede à saturação da servidão. Receamos essa motivação nova que é a nossa vontade, a nossa fé sem justificação a não ser estarmos presentes num imenso espaço que não é povoado pela mitologia de coisa alguma. Somos novos na nossa velha aspiração: a liberdade é doce para os que a esperam; quando ela for um facto para toda a gente, damos-lhe outro nome.

Agustina Bessa-Luís, in Dicionário Imperfeito

segunda-feira, julho 20, 2009

porco II

O holandês deixou os dois tupperwares no carro. Fiquei podre, pior que o porco. O porco ficou, nada mais nada menos, que 3 dias dentro da carrinha a apodrecer. Não bastava já ter sido morto e cozinhado. Cago-me de medo de hoje vir a sonhar com o animal a quem aquele cachaço pertenceria, inventar-lhe nome e família, data de nascimento, se gostava mais de bolotas ou ração.
Não admito este esquecimento por várias razões. Pelo desperdício como é óbvio. Pelo cheiro nauseabundo que ficou no carro do Joel e por termos que ter feito uma viagem a 140km/h sempre com as janelas abertas já depois de termos atirado os restos mortais ao lixo. Gosto tanto de silêncio.
A última razão, a mais forte, é também a mais absurda de todas. É que eu tenho pena como aquele porco acabou. Sozinho, sempre sozinho, depois de nos ter oferecido um belo jantar de quinta feira com o seu próprio corpo, acaba dentro de um tupperware do IKEA, (daqueles baratos que só se vendem em packs), debaixo do assento de uma carrinha que não é usada ao fim-de-semana, deitando odores do mais criativo que há, à espera que alguém repare nele.

sexta-feira, julho 17, 2009

porquinhos

O porco estava bom. Foi a primeira vez que comi tal bicho na casa nova. A casa é tão arejada que só pede vegetais e coisas assim frescas. Não aceita bem cadáveres, apesar de eu apreciar tais bicharocos. O holândes falou-nos dos seus hábitos alimentares. Vive sozinho e compra pão que vai congelando e descongelando. Depois do jantar, pus os restos dentro de duas caixinhas de plástico e dei-lhe.

Lembro-me depois do Alfredo sentado nas escadas, de mochila às costas. Teria mais de 40, cara carregada de sono e solidão.
- Quero mudar de quarto.
E estende-me as chaves, não olha para mim, como se quisesse cortar com o passado que as ditas cujas representavam. Aceitei-as, absolutamente conivente com o acto, como uma recém divorciada a quem o marido lhe entrega as chaves da casa. Não perguntei porquê, porque porquê parece-me uma pergunta demasiado brutal para quem sofria como Alfredo.
- Posso ajudar-te em mais alguma coisa, Alfredo?
- O americano batia palmas toda a noite. Havia um espanhol que ressonava alto, muito alto, então o americano resolveu bater palmas, como se fosse ele o dono do mundo, como se não houvesse mais gente no quarto.
Nesse dia, Alfredo foi passear com Andreja, eslovaca simpática que viajava sozinha e sabia falar português. Penso que depois de uma noite sem dormir, o nosso amigo Alfredo sentia-se bem apenas com alguém que falasse a sua língua.
Na manhã seguinte encontrei-o na sala sozinho, bem antes do tempo da água fervida e do café na mesa.
- Dormiste bem?
- Hoje sim. As pessoas não sabem uma coisa: não sabem muitas vezes que os problemas vêm delas e não dos outros. A culpa é quase sempre nossa. Sim, culpamos os outros dos nossos males e insónias, mas o problema está em nós.

O bruxismo voltou. Passo a noite a roer os meus próprios dentes, já gastos o suficiente. O melhor é não voltar a comer porco, a culpa pode ser mesmo do cadáver. Minha não é de certeza. O que achas Alfredo?

terça-feira, julho 07, 2009