quinta-feira, março 06, 2008

felinos apagados

Sim, ele diz-se casado mas não me parece por plena vontade e desejo. Não sei até que ponto tenho direito de achar isto, mas bamos, isto da internet é meio esquizo, a gente até diz umas coisas e não se sabe de quem, nem quem existe, nem quem não existe. Voltando. Ele, de voz fina, “femifina”, pois, feminina mas sem o conseguir ser com a naturalidade de uma mulher, diz-me sem eu lhe perguntar nada: “ Já faz 16 anos que eu comecei a namorar para a minha esposa”. Assim, naquela garagem semi-escura como as garagens costumam ser, e eu a tentar ler na penumbra o que traz estampado na t-shirt preta ainda mais escura. Já consegui, a vermelho, assim, e a explodir dos peitos, a frase: “ Wild at heart”. E enquanto penso no coração têxtil do Alberto, a Dona Amélia queixa-se que está a fazer fisioterapia à cervical porque que deu um “jeito”. Um jeito que não deu jeito portanto, todas as línguas têm os seus processos paradoxais. Reparo que pintou o pouco cabelo que lhe resta de um roxo difícil de aturar, e as unhas roídas de vermelho tipo sangue de ferida no jardim infantil. Ao fim de alguns anos de suspeitas, começa a agradar-me esta dependência quase física que as mulheres têm da cor - as bases que tornam as caras castanhas no inverno, os lápis que disfarçam as olheiras, os vernizes que cobrem a transparência das unhas, as tintas que escondem as brancas. Considero este recurso à maquilhagem um acto criativo, com o devido factor de falsidade que é intrínseco aos caminhos da imaginação. O Alberto continua escuro e imóvel de coração selvagem cosido ao peito. Dona Amélia, ensine-lhe umas coisas.

1 comentário:

António A. Antunes disse...

"...o devido factor de falsidade que é intrínseco aos caminhos da imaginação..."