terça-feira, março 18, 2008

há sonhos que são bem chatos

Sonhei a noite toda que estava a comprar camarões. Um mercado de peixe estreito e comprido, o cheiro que não sei definir, o gelo sujo de onde os animais quase vivos submergem. Não havia mais nada a não ser camarões, nada de petinga, nada de solha, só camarões. Parei no primeiro balcão, não conseguia decidir o que levar. E se são frescos, e se são saborosos, e se são caros, e se os do balcão do lado são melhores que estes, e se tudo isto não passa de uma lúxuria, ai jesus e se eles não queriam ter morrido e eu para aqui a apreciar cadáveres. Este é o ponto de viragem. Adorava comer camarões até hoje, descascá-los bem descascadinhos, tirar-lhes as patinhas moles primeiro, depois o invólucro duro do corpo e sugar as cabecinhas com cuidado para não tocar nos bigodes que podem picar. Logo no primeiro balcão, comecei a imaginar aquele grupo de bichos enterrados no gelo como se fossem uma grande família. Quantas gerações de camarões irei eu indiferentemente dizimar no estômago? Hum, aquele ali dos bigodes compridos tem aspecto de pai, o outro pequenino do canto foi o filho que não teve tempo de crescer, e aquele mais mole e afrouxado talvez seja o avô. Os mais brilhantes seriam as fêmeas pois está claro, olha aquela que bonita que era, devia ser galada pelo outro machão dos bigodaços compridos.
Andei mais um bocado pelo corredor estreito e comprido. Não comprei nada. O mercado estava para fechar e os vendedores começavam a reunir as famílias em caixas grandes de esferovite daquelas que parecem sempre sujas.
Levantei-me, gelada. Perguntei à minha avó o que estava a pensar fazer para o almoço: “ Massa com camarão e bróculo”. Tentei estabelecer uma lógica para tal coincidência, mas rapidamente fui invadida por um sentido prático da vida.
E se a fome apertar vou comê-los sim senhora, não posso ser hipócrita, logo eles que me sabem tão bem, ai pai mãe avó filho desculpem, afinal vocês se calhar nem são uma família porra, e sabe-se lá se sofreram ou não, também hão-de comer os outros que estão ao vosso lado, para além de já ter ouvido que sois uns necrófagos do pior e vos alimentais de qualquer resíduo orgânico que se encontre no mar, ou seja, o que vocês apreciam mesmo é um cadaverzito como nós, seus malandrecos.

1 comentário:

Joana Nobre disse...

Tu estás cada vez melhor.