sábado, agosto 08, 2009

carta sem correios

Querida Claúdia,
Tudo bem por aqui.
Abraça-me uma leveza quase inaugural. Estranha e comovente. Desfaço-me da casa onde sempre vivi.
Não vou mais ver a palmeira desde a janela da sala. E tenho medo que o Sr. Ribeiro dos correios se esqueça de mim. O Sr. Ribeiro usa bigode e trata-me por tu. Para cartas registadas não preciso de mostrar o bilhete de identidade. Os vizinhos conhecem-me o berço, os passos, o carro, as horas. Penso que não sabem nada mais para além do berço, dos passos, do carro e das horas. Mas partilhamos todos naquele prédio uma intimidade calada de quem respeita e vive o mesmo espaço. Nunca trocámos ovos nem cebolas. Uma vez a Gabriela pediu um escadote porque tinha uma inudação em casa. Não percebo como é que se vive sem escadote.
Abro gavetas e encontro cabelos guardados em plástico e cadernos escolares indiferentes ao conhecimento. Penso no incontrolável depósito que sou eu, que somos, e tento pôr os cabelos e os cadernos no sítio certo. Peço-me desculpa e deito-os fora. Apareces sempre na gaveta das fotografias. Não há nada para além de fotografias na gaveta. As imagens sabiam ser elitistas o suficiente para se organizarem num espaço próprio e se distanciarem de cabelos e cadernos. Que respeito tínhamos por aquilo. Este era o avô que nunca conheci, aquele que não tem cor, sempre de roupas cinzentas e cara a preto e branco. A alcatifa gasta é arrancada pelos braços desiludidos da Júlia.
Sabes que mais?
Nada disto me pesa Claúdia. Bebo cerveja ao fim da tarde como antigamente. Encontro pessoas de quem gosto em todo o lado, mas sinto-me mais ou menos miserável por lhes violar as histórias de vida cá dentro. Não respeito a verdade. Imagino tudo. Olho para os cadernos e os cabelos e só penso em si, claro, na vida perfeita que me ofereceu, sim ofereceu,

(desculpa Cláudia)

como poderia pensar noutra pessoa, como sequer é que poderia pensar em mim, eu que assiti ao bicho da madeira a comer as mesinhas de cabeceira do quarto sem nunca fazer nada, sem nunca lhe ter dito, sem nunca comprar um sprayzito. Eu enchi-lhe as gavetas de cabelos e cadernos, desculpe se já não podia guardar mais nada em sua casa, eramos nós por todo lado, na comida e na desarrumação, os casacos à porta e os gritos do fundo da sala " - Agasalha-te, ouviste?"

(olá Claúdia)

Parabéns pela defesa. Contudo, não te parece termos que "defender" a tese um pouco ridículo?
Até ao lanche.

1 comentário:

Anónimo disse...

Muitas vezes tropeço na mala onde guardo as fotografias. Uma mala antiga de cartão, de viagem, preenchida de autocolantes de hotéis onde nunca fui. A mala não é minha, é como se estivesse emprestada em minha casa, até que um dia transite e da mesma forma que me aconteceu tê-la há-de acontecer a outro.
A mala, em minha casa, é uma mesinha de cabeceira. Não ganha caruncho nem bicharada de qualquer espécie, a não ser aqueles que roem o tempo até que esse nos acabe. Mas desses bichos não temos vestígios, nem poeiras, nem buracos suspeitos.
Não está do meu lado da cama. Agora que penso nisso compreendo que não conseguiria dormir com uma mala onde já não cabem mais memórias. Do meu lado da cama a mesinha de cabeceira é uma malinha de palhinha entrançada que encontrei na Casa Casais. Está vazia. Não há lá nada. E por estar assim vazia está sempre preenchida com o que está em devir.
Estás na mala preenchida. Tenho muitas fotos em que apareces. Gosto muito de uma em que dormes de boca aberta, inocente, na camioneta para Madrid. Penso muitas vezes nessa viagem.
Senti uma felicidade de gente grande quando li este teu texto e me dizes que estás feliz na tua nova casa. Nesta altura percebi como crescemos para lá daquilo que é a memória que temos de nós.

Há imensas coisas ridículas na forma como vivemos e aceitamos as coisas que vivemos. A defesa da tese é uma delas. Deveria ser mais uma discussão que substanciasse aquilo que pensamos e nos apontasse coisas que não havíamos pensado. O que é ridículo é termos de não poder duvidar daquilo que escrevemos. Permanecemos perante um júri, a jurar a pés juntos que aquilo que escrevemos é a nossa verdade absoluta, duvidando e desconfiando dessas mesmas verdades...
Enfim... Aguardo com muita vontade o nosso lanche.

Cláudia