quarta-feira, outubro 14, 2009

1ª tentativa

Eu não queria ter tido aquela conversa. Estava sentada a comer um covilhete na Gomes a pensar como é que se fazia aquela porra daquela massa folhada. Aparece Adriano, o empreiteiro. O Adriano tem uma mulher asseada e pontual que se chama Ingrácia e é porteira do prédio onde vive. Se a idade dos filhos não enganar, eles devem estar casados há coisa de 40 anos. A filha é juíza, e o filho vive em Palma de Maiorca com uma alemã que conheceu durante a viagem de fim de curso.
Estava sentada a pensar na massa folhada, não sei fazer massa folhada assim. Adriano:
- Menina, posso sentar-me?
E senta-se. Perco a massa folhada e a imaginação matinal. Adriano cheira a álcool barato, costumo encontrá-lo numa taberna que se chama baca belha. Estão sempre os mesmo homens lá dentro e acredito que nunca estiveram outros desde 1900, data de abertura do estabelecimento. O álcool conservou a vida e os hábitos destes homens, que parecem carregar nas dentaduras o peso das serras em redor.
Sei que Adriano não usa dentadura porque os dentes dele são enormes e separados. Imagino o cabrito de domingo enfiado naqueles espaços vazios e mortos, o bagaço do baca belha a infiltrar-se veloz pelas rachas e a arder na garganta.
Adriano sentou-se e o tributo que presto às manhãs foi por água abaixo. Depois prás, para apimentar a coisa, ainda confessou que era poligâmico.
(não usou a palavra poligâmico)
Acabei o covilhete e disse-lhe que eu não era e que não gostava que o Joel fosse. Chamou-me egoísta. Que eu não sei respeitar a natureza humana, que isto é mesmo assim. Engoli o que me disse sem mastigar, não conheço a natureza humana para poder discuti-la. Pensei na Ingrácia sentada à porta do prédio a ouvir o som do elevador, mas acho que não foi por pena.


(Na semana passada o Gil disse-me que escrevo sobre coisas reais: aquilo que acontece, as pessoas que conheço, os pequenos nadas que vivo. Vim para casa miserável, com o gin tónico a borbulhar a pergunta o que é criar na cabeça e a esbofetear a artista que já conheci)

3 comentários:

Francisco disse...

Que maravilha! ;) Está muito bom.

Só o último paragrafo é que discordo. Esse Gil é uma besta. É que esqueceu-se de te dizer que a realidade só o é aos olhos de quem a vê. E olhar... é arte.

(o Gil que me desculpe)

Mariana disse...

Querida Mary...ler-te é um prazer!

bj

Mi

fvferreira disse...

o que me espanta no meio de tudo é como é que o cavalo do Adriano consegue ser poligamico...o mulherio de vila anda mesmo desesperado...apre