domingo, dezembro 23, 2007

o julgamento - pormenores de uma chefe chocante

A chefe Manuela para além do seu perfume e baton desprezíveis, também tinha os olhos carregados de risco preto daquele que parece nunca mais sair, e madeixas mal feitas. Via-se tão bem aquela raíz preta que começava despreocupadamente a nascer, acusando as pontas loiras e secas da sua tamanha artificialidade. Apesar de toda a sua idiotice e de usar produtos de maquilhagem insultuosos, a chefe tinha uns olhos que se podem considerar bonitos. Gosto de olhos que falem de qualquer coisa, que nos dêm festinhas ou que nos mandem para o caralho, mas que falem. Os dela mandavam-me para o caralho.
A Juíza para a chefe Manuela:
- "Lembra-se da arguida?"
A chefe olha para o lado com queles olhos pretos tipo azeitona prontos a espichar azeite para cima de mim e diz:
- "Perfeitamente".
Que contente que ela estava por se lembrar de alguém como eu, uma imbecil distraída que se esquece de contar os copos que bebe.
Depois lá se pôs a contar a sua versão sobre aquela noite, começando por dizer que já trabalha há 27 anos naquela esquadra. Que maneira pobre de começar um discurso, como se os anos de serviço fossem encobrir todas as mentiras que passados uns minutos começou animadamente a expelir por aquela boca vermelha imunda.
"A dona Maria Sottomayor não queria fazer a contra-prova, depois queria, depois recebia toques, depois punha-se ao telefone, eu falava pra ela mas a dona Maria Sottomayor não me ligava, ela esteve para cima de vinte minutos ao telefone, a dona Maria Sottomayor." Eu já não me sentia nem Dona, nem Maria, nem Sottomayor, e à custa da chefe Manuela aquele julgamento começou a ser exercer um tipo de fascínio sobre mim, como se tudo já me fosse distante e eu pudesse apreciar de forma neutra todos os exercicios de linguagem e manipulação que ali se praticavam.

Sem comentários: